A reconquista de Cabul, a capital do Afeganistão, pelos Talibans, ocorrida hoje 15 de Agosto de 2021, marca o começo acelerado do fim do imperialismo norte-americano, ou é apenas, mais do que a evidente derrota, uma retirada de um terreno bem difícil e pouco rentável? Oremos para que seja sobretudo o começo do ruir de um castelo de cartas, ou de infinitas notas de dólar sem provisão, para que uma Humanidade una, justa, livre e solidária se afirme mais...
A rapidez e a facilidade com que aconteceu esta queda do bastião do invasor norte-americano, apoiado na sua ajudanta NATO, e desapoiado pelo exército Afegão, surpreendeu bastantes analistas e sobretudo (aparentemente pelo menos) os mais ricos e apetrechados do mundo, os do Pentágono, que dois dias antes apenas previam cerca de um mês pelo menos antes de que eles conseguissem chegar a Cabul, o que só demonstra a incompetência e a arrogância que reinam nesses níveis políticos e militares considerados o máximo, e dos quais a eleição pelos democratas do já senil Joseph Biden para presidente da USA é um sinal e que só vem comprovar mais uma vez o provérbio popular que um chefe fraco enfraquece o seu povo, ou a sua máquina de guerra....
Na realidade, os Talibans (os estudantes) que governaram de 1996 a 2001, e só reconhecidos pelo Paquistão, Arábia saudita e Emiratos Árabes Unidos) apesar de alguns aspectos fanáticos e extremistas, estão muito mais próximos do povo Afeganistão (que conheci nas minhas duas viagens por terra para a Índia) do que os políticos e militares que foram apoiados pelos invasores norte-americanos e que agora fugiram para os países limítrofes. Logo, contra o que esperava e avisava o ingénuo ou tolo do secretário geral das Nações Unidas, não terá que haver grandes negociações pois não há quase concorrência e, à parte a necessária representação dos vários grupos étnicos, o governo será fundamentalmente o dos Talibans e o dum Estado ou Emirato Islâmico, com alguns aspectos muito duros ou medievais para a visão ocidental moderna (nomeadamente o tratamento machista das mulheres), mas que são aceites por muitos islâmicos naturalmente, embora os vinte anos de injecção monetária, ocidentalização e modernidade devam exercer agora alguma influência moderadora.
De facto, não foram nem serão os norte-americanos ou outros coligados os que conseguirão ajudar a evolução económica e das mentalidades e costumes, ao terem manifestado insuficiente tacto e capacidade dialogante, amor e sabedoria.
Quem serão os novos parceiros dos Afegão, e provavelmente já não em missão de guerra mas de economia e bem estar, não sabemos ainda, mas possivelmente a China, Paquistão,Irão, três vizinhos importantes e, claro, a sempre fanatizante e exportadora de terrorismo, pela sua ideologia wahhabi, Arábia Saudita, restando saber se nos pacotes de ajuda desta haverá permissividade para Isis ou Al Qaeda e estímulo aos ataques aos Shiia...
O mais valioso, de tudo isto, a par do mais trágico que foram os milhares e milhares de mortos, feridos e traumatizados, civis e militares, será a possibilidade de os norte-americanos reconhecerem que o seu imperialismo tem os dias contados e que deveriam passar a gastar os triliões e triliões de dólares (que não lhes custa nada pois imprimem os dólares que querem), dados aos investidores da industria dos armamentos em actividades mais pacíficas e benéficas para a humanidade. Esta sim, seria a grande lição frutuosa da derrota estrondosa do exército mais rico e apetrechado do mundo, perante uns guerrilheiros e estudantes quase pés descalços.
O segundo fruto para o qual todos oramos é que os USA, e o seu braço direito a Nato, terminem a sua ganância no Oriente e abandonem rapidamente o Iraque, e a Síria, onde estão a roubar óleo e trigo que tanta falta fazem aos milhões de sírios, residentes ou refugiados. Um escândalo este gangsterismo que está a ocorrer no norte da Síria, com a desculpa de estarem a lutar contra o ISIL que criaram e utilizam, e os Curdos, e porque estão fanaticamente contra Bashar Hafiz al-Assad, o legítimo presidente sírio.
Com uma retirada pessimamente mal preparada, com erros trágicos como o abandono de certos aeroportos e quartéis, fiados ilusoriamente na lentidão do progresso do Talibans, com afirmações completamente tolas das chefias norte-americanas e da Nato, quando a quererem exigir negociações com os Talibans ou a prometerem continuar a operar em Kabul, horas antes de os estudantes guerrilheiros terem tomado conta de todo o país à excepção do aeroporto, por onde se devem estar a passar certamente momentos muito emotivos e trágicos até, pois nem todos conseguirão sair do país -, espera-se, finalmente, que esta humilhação, tenha efeitos moderadores nos ímpetos guerreiros com que volta e meia norte-americanos, Nato e União Europeia investem contra alguns países, tais como Rússia, China, Irão, Síria, Somália, Coreia do Norte, Cuba e Venezuela, países não alinhados com o plutocracismo destrutivo que rege o Ocidente, a Arábia Saudita, Israel e mais alguns países e governos vendidos.
Possam então os mesquinhos bloqueios e provocações e conflitos norte-americanos findar gradualmente. Que aprendam com esta lição no Afeganistão, que só trouxe mortes e sofrimentos. Que a Nato e os Estados Unidos da América comecem a metamorfosear os seus investimentos belicosos e destrutivos em energias de prosperidade, cura e cultura, dando início a uma nova Era, como a pintura final de Bô Yin Râ prefigura, de prosperidade, justiça, solidariedade, amor e espiritualidade sã....
Ps. Hoje 28.12.2022 acrescentemos uma intuição que já há algumas semanas perpassa: USA saiu do Afeganistão porque sabia que a guerra da Ucrânia estava a preparar-se, porque os Talibans em luta com os do ISIL teriam bastantes problemas que se estenderiam aos países vizinhos e porque retiveram em si muito dinheiro do próprio governo do Afeganistão, o qual anda há meses a reclamá-lo...
A Criação do Mundo, de
Miguel Torga, é uma obra cujo título é enganador: pensamos que se
trata de alguma cosmogonia e vamos encontrar a sua biografia,
desde criança até à prisão pela Pide e a detenção no
Aljube, para depois casar e estabilizar em Coimbra, com muitas aventuras, descrições e histórias fabulosas,
sempre acompanhadas pela sua auto-consciência lúcida e
escalpelizante, face às constantes opressões e desilusões que o
vão obrigar a evoluir e a crescer num sentido de independência
solitária mas solidária, livre pensadora mas telúrica.
É uma obra entusiasmante,
e mesmo empolgante, tantas foram as dificuldades que ele teve de
cruzar e vencer, tanto o momento genial de vivência e descrição e,
embora os Cinco Dias da Criação do Mundo se desenrolem em cinco volumes, com
cerca de 1000 páginas, lê-se rapidamente. E recomenda-se bem...
Junto com os doze volumes do
Diário constituem uma autobiografia verdadeira, corajosa,
esforçada, bem narrada e com vivências tão fabulosas que nos
interrogamos como é que o Prémio Nobel nunca lhe foi dado, e tem
sido dado a outros muito menos valiosos que Miguel Torga, aliás
Adolfo Rocha, um médico transmontano, nascido (12-VIII-1907) em família humilde de lavrador e
singrando por si mesmo até se tornar uma das vozes mais genuínas e
lúcidas do Portugal profundo, trabalhador e lutador, justo e livre.
Se quisermos apresentar
muito brevemente a obra, pois a sua leitura é recomendável a todo o
português que ama ainda a sua terra, o seu povo e os seus valores potenciais, resumiríamos
assim:
O Primeiro Dia, no 1º volume da Criação do Mundo, dado à luz discretamente em 1937, narra o seu ambiente
natal, a família, a aldeia e os seus habitantes, os trabalhos agrícolas, os costumes e vida
religiosa, a escola primária e as peripécias extraordinárias que
levam o professor da instrução primária, o sr. Botelho, concluída com
distinção, a pedir ao pai embevecido que permita ao jovenzinho
Adolfo continuar a estudar, ao que ele anui sabiamente, mas como não
havia dinheiro para custear o liceu em Vila Real, ei-lo enviado como criado
de servir para o Porto, a quinze tostões por mês, onde vive cerca
de um ano, enfrenta as primeiras falsas acusações, opressões e
perseguições, mas sempre a ler, a aprender e a conhecer o Porto,
até ser despedido pela sua independência ou rebeldia, voltando à aldeia, que o recebe algo trocistamente...
Depois, por ideia do prior
da aldeia, vai para o seminário de Lamego, onde se "agarrou ao
estudo com unhas e dentes", concluindo o ano bem e tendo as suas
férias na aldeia natal, Agarez (S. Martinho de Anta), onde começa a despertar a energia
sexual e a atracção por uma amiga, a frequentar a taberna e algumas
casas mais ricas, e a sentir que já não acreditava nas litânias que
todos repetiam: em verdade "perdera a fé". Dirá então ao Pai no fim
das férias que já não queria voltar ao seminário, pelo que decidem
enviá-lo para o Brasil, o El Dorado para muitos portugueses de então, tal Ferreira de Castro...
O Segundo Dia, ocupando as
restantes 100 páginas do 1º volume da Criação do Mundo,
narra os labores, vivências e aventuras na enorme fazenda de Santa Cruz, em Minas Gerais, de um
dinâmico tio, onde o jovem Torga passará cerca de cinco anos, como
"moiro de trabalho" e seu braço direito, embora muito perseguido pela mulher dele. No último ano pode frequentar ainda o Ginásio de Leopoldina, onde cria amizades, se destaca e ensaia os primeiros versos. Uma
tarimba, ou mesmo uma iniciação (nomeadamente no amor), fabulosa para toda a sua vida...
O Terceiro Dia e 2º volume da Criação do Mundo narra o regresso a Portugal, o
reencontro com os pais e a aldeia, a difícil inserção do tio e da
mulher na aldeia, a entrada no colégio interno de S. António, em
Coimbra, com os melhores autores portugueses à sua disposição na
biblioteca e um casal de professores estimulante, os bons resultados em pouco tempo de estudo, o regresso
do tio e sua "querida" mulher ao Brasil (que alívio..), a
conclusão do liceu, a opção difícil pela Medicina e a entrada e
formatura na Universidade de Coimbra, e a prática de clínica geral
na sua zona natal, com um empregada namorada local, uma doença grave
que o levou a ser operado, e a recuperação lenta...
O Quarto Dia, e 3º
volume de ACriação do Mundo, narra uma viagem à Europa de automóvel com dois companheiros de circunstância e algo atemorizados com a resistência de Torga a saudações fascizantes, com as passagem mais detalhadas
pela Espanha de Franco, Itália de Mussolini e a Paris dos
portugueses exilados, e com peripécias muito curiosas.
O Quinto Dia e 4º volumede ACriação do Mundo , mostra-nos
a sua reeinserção nos ambientes portugueses, a escolha de ser
otorrinolaringologista e em Leiria, o meio pequeno e simpático dos intelectuais que conhece, os
seus livros de poemas a serem publicados e os pouco amigos que os
discutiam e apreciavam, e finalmente a prisão pela Pide e a sua
detenção por uns meses no Aljube, com histórias muito emocionantes
passando-se até à sua libertação por fim. Este volume foi já
publicado após a revolução do 25 de Abril e pode narrar a prisão pela Pide e as
suas críticas à opressão salazarista.
Publicou-se finalmente em 1981, o Sexto Dia, e quinto volume, da Criação do Mundo, no qual coroa e reflecte sua vida valiosa e lutadora, plena de causas e ideais assumidos e manifestados. Há menos cenas altamente emotivas nesta fase final da sua vida mas ainda assim destacam-se os sentimentos e reflexões sobre os efeitos da morte dos pais, a desilusão da democracia portuguesa, a amargura pelas invejas e rivalidades literárias, a apreciação do universalismo fraterno que os portugueses conseguiram manifestar no Brasil, em Cabo Verde e na ilha de Moçambique, como constata in loco. sentindo fortemente a ligação profunda com os compatriotas simples e muitos até transmontanos, emigrados no Brasil.
Neste O Sexto Dia Miguel Torga partilha então cronologicamente o regresso e tentativa de readaptação, com algumas desilusões, a Leiria e aos amigos, a sua lenta recuperação de doentes ou clientes no consultório, o aparecimento e o casamento com a sua mulher Andrée Crabbé , as aprendizagens últimas com os pais, a escolha de Coimbra como local ideal para a sua missão curativa e de bisturi, os passeios por Portugal e a recolha de histórias de animais para o que se tornará os Bichos, a continuação da opressão ou mesmo ódio salazarista e da Pide, nomeadamente em relação aos seus postos médicos e livros, as caçadas que lhe permitiam sensorialmente um regresso ao paraíso original, os projectos de revistas que falharam rapidamente, a doença e a morte da mãe "aquela alma irmã que durante largos anos fora ali a encarnação viva da cordialidade e da alegria", os mistérios das doenças e e das curas, sempre tão dependentes dos doentes em si, a viagem com a mulher ao Brasil, onde tem "com milhares de patrícios em todas as associações lusas a fraterna comunhão que sonhara", a revisitação dos locais e pessoas que lá conhecera há trinta anos e a metamorfose das ideias com que ficara, o consultório coimbrão tornado cenáculo contestatário ("centro de cavaqueira e conspiração") e espiado pela Pide, a morte impactante do Pai e mestre, a modernização da casa feita pela mulher, a morte de Salazar, a viajem algo desilusiva à África portuguesa, embora com o deslumbramento da ilha de Moçambique, a morte dos amigos, o 25 de Abril, as esperanças e uma certa desilusão posterior e, finalmente as auto-observações ou consciencializações últimas onde reafirma a sua essência de livre pensador e escritor: pois "lutara sempre por universal de valores fraternos, por uma ordem social onde a liberdade fosse a lei das leis e a arte o credo dos credos".
Miguel Torga deixou a Terra, física mas não espiritual, em 17 de Janeiro de 1995, a sua mulher seguindo-o no mesmo ano. Que eles avancem luminosamente no Cosmos, com a Divindade cada vez mais brilhando neles, e nos inspirem sabiamente.
As reflexões ao longo de
todos os volumes são muito valiosas, e transcreveremos apenas
algumas deste 4º volume, escritas na prisão, uma experiência sempre importante na vida de alguém, como vamos ver:
«A receber a luz do dia por
um postigo cego, impossibilitado de ler e de escrever, sepultado
vivo, passava horas sentado no catre regelado, a meditar. Os atropelos que a avidez do mando era capaz de fazer em nome da ordem,
da civilização cristã, dos valores morais, da pátria e de
quejandas altisonâncias.
O mesmo ser, que no
decurso dos séculos e à custa de tantos sacrifícios e coragem
conseguira erguer-se do rés da natureza aos degraus de uma dignidade
quase divina, não tinha pejo, sempre que lhe convinha, de tentar
reduzir o semelhante à simples animalidade do começo. Enjaulado
como uma fera, privado dos mais elementares meios de higiene, a ouvir
e a cheirar os próprios rumores e odores, sem voz, sem direitos, sem
acção, condenado a uma existência meramente vegetativa, funcional,
de alambique, a comida a entrar e a sair, o sono e a vigília a
alternar na repetição pendular do mesmo absurdo. Um suíno no
chiqueiro tinha mais regalias do que ali um filho de Deus: o tratador
que vinha espreitá-lo ou nutri-lo, falava-lhe, ao menos.»...
E seguem-se outras páginas
bem valiosas de auto-avaliação e de forte questionamento da
injustiça erguida a sistema, com uma consciência do corpo
espiritual da humanidade, acentuada ainda quando lê nas paredes os
nomes dos presos antigos e reflecte acerca da sua capacidade de resistência:
«Por enquanto, não
sentia o ânimo desfalecido. Pelo contrário. O osso ia ser duro de
roer, mas estava decidido a rilhá-lo corajosamente, como outros o
tinham feito antes de mim, porventura com mais mérito, risco e
humildade. Outros que sentados naquela mesma enxerga e diante
daquelas mesmas paredes, haviam meditado, interrogado e respondido
com igual desespero e expectativa. Porquê, tamanha raiva prosélita?
Até quando tantas e tais humilhações?
Esquecidos de que apenas o
triunfo os legitimava, os conjurados oportunistas crucificavam
impiedosamente os subversivos inoportunos de hoje. Enrodilhados numa
teia de sofismas e de interesses, tomavam de assalto o poder,
legislavam, decretavam, erguiam um monumento à sua intervenção
providencial, e consideravam qualquer atentado a essa soberania um
crime de lesa-pátria. Mas fossem quais fossem as mistificações da
prepotência, e durasse o que durasse o tormento, nunca faltariam
consciências rebeldes à submissão e dispostas a dar testemunho da
impostura.
Esta lição, pelo menos,
aprendera já: - que havia espíritos indomáveis que nenhuma força
vergava, e que, no plano dos valores humanos, ninguém, está sozinho
no mundo, por mais isolado que pareça. Que sempre uma legião de
sombras vem solícita em nosso socorro dos confins da memória [e do
mundo espiritual], nas horas de aflição. Antepassados e
contemporâneos, vinculados às mesmas ideias e sentimentos, que
primeiro nos aconselham, estimam e amparam, numa exemplaridade
paradigmática, e depois, como isentos horizontes, medem
imparcialmente a grandeza das acções que praticamos, e nos
santificam ou amaldiçoam ao rigor da sua luz.
De todos eles recebia
agora ajuda, cada qual a lembrar-me o seu comportamento varonil de
lutas e agruras. Casos trágicos de sacrifício total, abnegações
levadas às últimas consequência, estoicismos quase sobre-humanos, e
até fraquezas lamentáveis, redimidas por suicídios heróicos na
hora da exaustão. Uma cívica comunhão de santos que inseria a
dignidade individual no contexto colectivo, a fragilidade do vime no
vigor do feixe. João António, Pedro Martins, Manuel Paulo, Aníbal
Vieira... - lia a custo. Nomes desconhecidos gravados na caliça
salitrada com o rebordo da colher»...
Nestes tempos de novas censuras e opressões saibamos também nós, em sintonia grata com Miguel Torga e os seus companheiros e camaradas, suportar e vencer as manipulações e investidas, ou as detenções e bloqueios que nos fizerem, persistindo na luz, na justiça, na verdade, na fraternidade, no amor e na liberdade...
Quando o In-Memoriam
de Antero de Quental foi dado à luz em 1896 (com as duas fotografias a antecederem o frontispício,) já passados cinco anos
da sua libertação samuraica do corpo terreno, muitos foram os elogios, poucas as críticas
desfavoráveis, mas uma destas, numa exemplaridade da inveja típica
tão portuguesa, saiu da pena de um conterrâneo e condiscípulo de
Antero que por mais de uma vez o atacara ou atraiçoara. Nada de
inesperado então, tanto mais que não fora convidado para participar
no In Memoriam. Foi publicada
discretamente no Brasil, numas cartas, por aquele trabalhoso
investigador e algo malvado ou invejosamente ambicioso Teófilo
Braga. Mas logo uns meses depois em Outubro eram elas publicadas em
Lisboa, num opúsculo intitulado Antero de Quental. In Memoriam. &
Rodrigues Freitas. Comemoração biographica, pela Typographia da
Companhia Editorial Portuguesa ao Conde de Barão. Oito páginas
dedicadas Antero e nove à biografia de Rodrigues Freitas. Uma breve
Advertência, assinada com as
iniciais A. R. Diz que o "notável erudito e laureado crítico"
"condescendeu nisso aos nossos desejos, - o que muito
agradecemos à sua comprovada amabilidade – aqui as reproduzimos
como elementos literários de subida valia».
Leiamos
então Teófilo Braga
acerca do In-Memoriam de Antero, com sublinhados meus nas partes mais negativizantes: «(...) Tem o livro um utilíssimo
intuito: consagrar a Memória de Antero Quental, o incomparável
poeta dos Sonetos filosóficos, nos quais fez por assim dizer
a autópsia da sua alma atormentada. E para que em tudo este
monumento trouxesse impresso um carácter simpático, foram
convidados os mais íntimos amigos de Antero de Quental, os que de
mais perto viveram com ele, os que escutaram as suas doutrinas
metafísicas e revolucionárias, os que o acompanharam como
admiradores sinceros até ao seu último momento, para contribuírem
para este padrão In Memoriam com estudos críticos sobre a
sua vida e os vários aspectos do seu talento. Que belo livro
seria este, e bem merecido por Antero de Quental, se o pensamento
originário fosse realizado! Infelizmente a homenagem ao genial
poeta, longe de consagrar-lhe a memória, deprime-a pela
inconsciência com que alguns amigos se comprazem em descrever
situações menos louváveis de Antero, ou pondo em evidência
o seu estado patológico de vasia mental, de que foi vítima.
Quanto
ao influxo simpático, tão natural e tão simples de conservar e de
repassar todo esse livro, está substituído por uma atmosfera de
ódio por alguns escritores que se serviram daquele pedestal para
dali detrás do vulto trágico e compassivo de Antero de Quental
atirarem sua pedrada traiçoeira a um [ele...]ou outro
transeunte por este arraial das letras portuguesas.»(...).
Prossegue
depois explicando a origem do In Memoriam, como levou cerca de
seis anos, como há nela muita ingenuidade a fazer-se de sinceridade,
Teófilo desejando então modestamente que não lhe suceda o mesmo
no seu inquérito ou In-Memoriam....
Explica
ainda que «o Livro in Memoriam foi coordenado por Luís de
Magalhães e Jaime Magalhães de Lima; pouco informados dos
antecedentes de Antero deixaram penetrar nesse livro indivíduos que
hostilizaram Antero, ou que nunca tiveram a sua intimidade que hoje
afectam; e admitiram narrativas banais que não engrandecem o
espírito daquele a quem se presta a apoteose.»
Enumera em seguida
os 29 autores e seus artigos, e depois de muito selectiva ou
sobranceiramente dizer que «pondo de parte três ou quatro destes
trabalhos que emprestam verdadeiros subsídios para o conhecimento da
individualidade de Antero, os outros são prosa estilísticas, em
que os seus autores mais ou menos se colocam em foco a pretexto do
desgraçado poeta»
Parece
mesmo que Teófilo tentava dissuadir possíveis leitores brasileiros
interessados In-Memoriam de comprarem a obra...
Vejamos
todavia que provas concretas dá Teofilo Braga, esse sim, um
adversário ou inimigo de Antero: ora entra logo a matar contra
Vasconcellos Abreu, com quem se daria mesmo mal, citando algumas
frases do seu contributo, em que este emprega o eu e o meu algumas
vezes, concluindo:
«Por
este insistente personalismo vê-se logo que se tem em frente um
pedante; procura-se o nome e acha-se o célebre sanscritólogo-
escrivão, que além de assoalhar aí a sua personalidade cómica,
ainda joga à sorrelfa a sua pedrada aos que bem conhecem toda a sua
inanidade.
A
nota odiosa sujou o livro que devera ser simpático; esta, porém, é
propositada e bastava considerá-la como um abuso, passando adiante.
Há outras de deplorável efeito nas narrativas dos mais sinceros
amigos de Antero, que com certeza não as escreveram para produzirem
a impressão deprimente que deixam em quem lê.»
Anote-se
que Guilherme de Vasconcellos Abreu, companheiro de Antero dos tempos de estudante
até ao seu último momento em Portugal continental, de facto, no
In-Memoriam, conclui o seu contributo (bem valioso e mostrando o amor da sabedoria do Oriente que os unia) a defender Antero e, logo,
a atacar Teófilo, embora sem mencionar o seu nome: « Alguém que em
tempos se dissera seu amigo, mas por íntima ruindade própria se
afastara dele, acoimou-o, depois de morto, de vício em que o
acusador era useiro, e assim explica o seu suicídio.
Mente
esse vil caluniador!
Antero
foi sempre alma pura, e em toda a sua vida um idealista!
Era
um doente!
Era.
Sofria de mal que Stuart Mill diz ser a força dissolvente do
universo psicológico, da reflexão e meditação em si e consigo,
que dá a acuidade interna mas afunda na tristeza.
Antero
era um doente, porque génio de águia, águia subiu até o sol
e não se aqueceu, transformou-se consumindo-se, debilitando-se e
mariposa queimou-se na luz que procurava.»
Uma boa mensagem nos é transmitida: a de não nos deixarmos queimar nem aniquilar na luz, nas seitas e gurus ou na extinção do eu e no nirvana, mas antes nos religarmos ao espírito imortal e ao Divino, criativa, persistente, luminosa e invencivelmente..
Ora os
episódios que Teófilo Braga vai narrar, uma brincadeira divertida e um disfarce ou discrição,
parecem-nos que só aos seus olhos têm esses sentidos deprimentes,
justificada pela sua falta de humor e talvez talvez por alguma
inimizade para com esses companheiros de Antero.
Passa
então ao segundo caso de inimigos:«Quando Antero de Quental
estabeleceu por algum tempo em Lisboa a sua residência, junto com
Batalha Reis, agrupou-se em volta dele uma pequena boémia de rapazes
inteligentes e espirituosos, que viviam em troça permanente.
Filosofava-se, discutia-se, improvisava-se, com um criticismo
vagabundo mas esterilizante», contando em seguida como Luciano
de Castro, que começara a destacar-se no jornal Revolução de
Setembro, «quis assistir às discussões dessa reunião, a que
deram o nome de Cenáculo, para ser iniciado por Antero na
Metafísica. Com toda a sinceridade da sua crença na superioridade
mental era fácil abusar dele; Antero começou por fazer-lhe a
revelação de um extraordinário poeta cossaco, ainda desconhecido
em Portugal, chamado Ulurus, do qual expôs os mais arrojados
pensamentos [E que pena, diremos, não terem sido registados...]
Luciano Cordeiro acreditou na individualidade de Ulurus, e isto em
nada deslustra a nobre confiança que ele tributava a um espírito
dirigente que se chamou
Porta-estandarte das ideias modernas em Portugal».
Anote-se
aqui esta bela imagem caracterizadora de Antero, erguida ou pelo
menos relatada, embora criticamente, por Teófilo, e continuemos com
a incapacidade de Teófilo de ser jovem e brincar ou ironizar, antes
pautando-se por padrões que lhe terão permitido chegar, enquanto
republicano, algo que Antero não era, a Presidente da República, e
logo a atingir alguma imortalidade, contudo bem menor que a de Antero
enquanto líder, alma pura e genial, poeta, filósofo e figura moral
e ética, senão mesmo espiritual.
Relata
em seguida como Luciano Cordeiro referiu o tal Ulurus primeiro num
artigo e depois no seu Livro de Crítica e como terá havido
troça grande do Cenáculo. E como no In Memoriam Batalha Reis
refere de novo “essa anedota que devia estar esquecida”, “num
embuste em que quem não estava na melhor posição era Antero de
Quental,” transcreve o passo do In Memoriam, e algo
hipocritamente conclui. «Não se cita aqui o nome de Luciano
Cordeiro, mas todos [falso]conhecem a anedota , que hoje só
tem o inconveniente de pôr a uma luz menos simpática, o espírito,
dirigente, que obedecia às sugestões do meio trocista em que se
achava.»
Seria
assim, ou apenas passaram a saber dela, e agora com este folheto,
graças às elucidações algo policiais de Teófilo, que Luciano de
Castro fora um dos enganados pela fake new de Antero?
Eis-nos
com Teófilo Braga tentando repisar ou antipatizar a memória ou
figura de Antero, talvez ironizando mesmo quando lhe dá o epíteto,
“o dirigente”, e logo em seguida sugere ser uma mera marioneta do meio
ambiente.
O
terceiro inimigo a abater (e porque razões pessoais estes três
referidos expressamente?) surge em seguida:«Mas esta tendência para o engano
ou o logro é também revelada por uma narrativa do seu fervoroso
amigo Alberto Sampaio, que o acompanhou na viagem a Paris»
quando foi visitar o “grande Michelet” e este «recebeu o
pseudo-Bettencourt com a sua ingénita bondade, ouviu ler traduzidas
para francês algumas composições do livro, e deu ao visitante uma
lacónica carta de agradecimento para Antero de Quental». E
transcreve a versão algo diferente de Alberto Sampaio, conforme está
no In Memoriam.
E
vai prosseguir (mostrando de início a a sua fraca visão da história
e da biografia) e finalizar, atirando-se ao que lhe faria talvez mais
inveja em Antero, a sua qualidade de filósofo ou metafísico, atacando-o
escudado na sua ilusória filosofia positivista de Augusto Comte, a
que aderira plenamente e que poucos anos depois estava defunta na
Europa filosófica:
«Para
quê arquivar estas pequenas coisas, que não deixam um indivíduo em
boa luz? [Teófilo sempre na mesma, a malquistar a imagem-memória de
Antero]. O livro abunda em narrativas assim insignificantes, dando
todo o relevo a destemperos de mocidade, e ao prolongamento desta
além do seu tempo».
É possível que Teófilo Braga nunca tenha brincado
nem rido? Mas vem aí mais uma atordoada depreciadora invejosa (ó Fama, ó Glória...) fortíssima: «Quando se trata de aglomerar factos
positivos para fundamentar a glória de Antero, apenas há pirotecnia
de estilo e elegias sobre esperanças decepadas.» E como prova
isso? Aduzindo um texto, dando a entender que é um contributo para o
In-Memoriam de Antero, de um seu condiscípulo da
intransigência fanática positivista e talvez, esse sim, sofrendo
mais da “pedantice” que atribuíra a Guilherme de Vasconcellos
Abreu: «Neste ponto o estudo de Mariano Machado sobre a capacidade
filosófica de Antero é cheio de verdade: “Em mim, que estudara
desde 1866 a 1868 estudara muito...[quase três anos...] a
matemática e a filosofia de Augusto Comte, encontrou ele um
intransigente positivista. É claro que um um intransigente
positivista não podia concordar com a orientação política e
filosófica de Antero, então intransigente metafísico. Ele
esqueceu em um momento infeliz o que devia ao seu nome, classificando
de banalidade francesa os trabalhos de Comte, um dos maiores génios
de que a humanidade se orgulha, e que merece com justiça, segundo
Stuart Mill, ser considerado superior a Descartes e Leibnitz, por ter
manifestado uma potência intelectual igual à destes, em uma idade
avançada do saber humano.»
Depois
destas mirabolantes hierarquizações dos génios da humanidade, vá
lá Teófilo cita algo menos mal da apreciação de Mariano Machado:
«Pode não reconhecer-se nos escritos filosóficos de Antero os
traços gerais e preciosos de um sistema filosófico, perfeito, mas
o que não é justo contestar-lhe é a originalidade da sua
argumentação, a sua subtileza...»
A
hipocrisia de Teófilo, que mal Antero morrera se lançara a publicar
torcidamente vários poemas de Antero, em Raios de Extinta Luz,
certamente contra o que seria a vontade dele, levando mesmo a
especialista anteriana Ana Maria Almeida Martins a escrever na sua
sua notável obra Antero de Quental e a Génese do In Memoriam:
«Raios de Extinta Luz, livro que Teófilo Braga no início de
1892 publicou e prefaciou, com poemas pretensamente inéditos de
Antero. Esse prefácio é, no mínimo, deselegante e cheio de
inexactidões, ofensivo da memória do poeta e que funciona como um
ajuste de contas obviamente cobarde», vai no fim do seu artigo, no
último parágrafo, mostrar bem o seu lado diabólico ou de advogado
ou amigo dos diabos, ou do Diabo, etimologicamente, o Adversário:
«Destaca-se
no livro, como peça capital, o estudo do Dr. Souza Martins,
Nosographia de Antero, estudo magistral de psicologia mórbida,
sobre uma individualidade cujos antepassados são bem conhecidos, e
cujos actos pessoais foram muito acentuados; chega-se à conclusão
demonstrada que o poeta era um alienado! Por isto se pode com
franqueza dizer que este estudo, aliás brilhante, não devera entrar
no livro In Memoriam, se é que as narrativas de situações
comprovativas não matizassem essa consagração. É importante o
estudo Bibliográfico da obra de Antero; pouco trabalho realizado e
muita dispersão de energia, sem plano. Louve-se a intenção do
livro de apoteose; confessemos que o poeta merecia um monumento
erigido pelos amigos sinceros, mas pela forma em que está redigido,
chegamos quase a classificá-los – amigos dos diabos.»
Acrescente-se
que nesses tais "amigos dos diabos" Teófilo Braga e de algum modo Sousa Martins estariam à
cabeça e não os que defendendo Antero de Quental tiveram de ser adversários de Teófilo Braga e dos seus erros, distorções ou más vontades...
Neste sentido corre bem a carta trocada entre dois dos organizadores do tão belo quão valioso In-Memoriam: Joaquim de Araújo envia-a a 16 de Agosto de 1893 a Joaquim de Magalhães e no fim afirma a propósito da sua colaboração no número da Revistade Portugal que estava para sair dedicado a Antero: «O meu artigo combate por diversas vezes, sans rancune, de um modo elevado, afirmações do Teófilo Braga, e parece-me que é dos mais úteis que a Revista há-de encerrar. Conte comigo absoluta e inteiramente, e conte que hei-de fazer uma coisa digna do nosso grande Morto. Reputo o meu artigo indispensável, absolutamente indispensável à biografia de Antero, que de futuro haja de escrever-se...»
E neste futuro de páginas brancas continuamos nós a reflectir e a escrever, defrontando forças e seres hostis como eles, na senda de desbravamento luminoso mas bem árduo de Antero de Quental e dos seus admiradores, companheiros e mateiros...
Ad astra per aspera... Himavat, pintura de Bô Yin Râ....
O humanista Tomás More, que fora o Chanceler do Reino, é decapitado neste dia 6 de Julho, de 1535,
junto à Torre de Londres, após um ano e pouco de prisão (frutuoso em escritos religiosos e confessionais), por recusar-se a aprovar que o "monstruoso" rei Henrique VIII (1491-1547) se tornasse o chefe da
igreja Católica em Inglaterra, separando-a da obediência a Roma. Nascido em Londres em 7-II-1475 (um ano antes da introdução da tipografia por William Caxton), de um advogado e depois juiz, segundo de seis filhos, estagiou como pajem do Arcebispo de Cantuária e Chanceler do Reino, John Norton, um pré-humanista, "homem mais venerado pelo seu carácter e virtude de que pelas suas altas dignidades" (Utopia), que muito o apreciou e o mandou estudar em Oxónia (Oxford), onde esteve de 1492 a 1494, sendo aluno de dois dos primeiros humanistas ingleses, Thomas Linacre (com quem Erasmo também aperfeiçoará o grego) e William Grocyn (que com John Colet tinham recebido a tocha do humanismo e dos estudos clássicos em Itália), e passando a dominar o latim e o grego. O seu pai insistiu para que que estudasse no Lincolon's Inn em Londres, uma universidade mais avançada, o que ele fez.
Em 1499, Desidério Erasmo de Roterdão no começo de um Verão de sonho vai pela 1ª vez a Inglaterra como pedagogo particular do William Blount, Lord de Montjoy, e encanta-se com os principais humanistas da época (e não só pois também elogiará as mulheres), e numa carta de 5-XII-1499 para John Fisher conta: «Quando ouço Colet, parece-me estar a ouvir o próprio Platão. Quem é que não admira, em Grocyn o saber completo? Que pode haver de mais agudo, profundo e delicado que o juízo de Linacre? Será que natureza alguma vez criou algo de tão suave, afável e feliz como o génio de Thomas More?»
Em 1504 Thomas More foi eleito para o Parlamento e em 1505 casa-se com Jane Colt de quem teve quatro filhos, educados excelentemente, destacando-se o mais novo John, que traduziu o nosso sábio de então Damião de Goes, e a mais velha Margaret, que traduziu do latim para inglês a obra Precatio Dominica de Erasmo, A Devout Treatise upon the Pater noster, tendo-lhe Erasmo dedicado o Comentário do poema cristão de Prudêncio, em 1523.
Thomas More sempre foi muito religioso, tendo frequentado a Cartuxa e ao longo da vida as cerimónias e práticas religiosas. Foi um defensor fogoso da religião católica apostólica romano refutando directamente as obras dos principais protestantes da época, tal Lutero, Simon Fish e William Tyndale, e em geral, em 1529, com o Diálogo sobre as Heresias. Já no ano e meio de prisão escreveu, ao modo do nosso Frei Tomé de Jesus, um dos desgraçados da aventura de Alcácer Quibir, com o seu Trabalhos de Jesus, o Diálogo de Conforto na Tribulação. Foi também um admirador de Pico della Mirandola, de quem traduziu para inglês a sua biografia realizada pelo sobrinho, a qual continha um antologia de extractos mais valiosos da sua obra e traduziu para inglês algumas regras de Amor religioso ensinadas por Pico. Traduziu ainda as obras de ironia e crítica social de Luciano de Samostata, as Sátiras, do grego para latim, com a ajuda de Erasmo numa das cinco vezes em que este esteve em Inglaterra e se hospedou em sua casa e se encantou com a sua família e ambiente, tanto mais que o imortal Elogio da Loucura foi redigido, em 1509, na casa londrina de Bucklersbury, e a Thomas More dedicado.
A ascensão de Thomas More em cargos públicos foi rápida, passando de diplomata e negociador na Flandres, onde escreve a Utopia, em 1516, a Undersheriff de Londres e depois a Speaker da Câmara dos Comuns em 1523, High Steward da Universidade de Oxford em 1524, chanceler do ducado de Lancaster em 1525 e por fim Chanceler do Reino. Todavia, em 16 de Maio de 1532 preferiu manter-se fiel à sua consciência do que sobreviver à custa da aprovação do que considerava errado, a separação da Igreja em Inglaterra da Igreja Católica Apostólica Romana, e a perseguição dos católicos, pelo que enunciou ao cargo, sendo substituído pelo famigerado Thomas Cromwell. E também não quis participar na cerimónia da coroação de Ana Bolena, a 2ª mulher de Henrique VIII, nem apoiar a Lei de Sucessão, contra a 1ª mulher, Catarina de Aragão, com quem vivera 24 anos. Ana Bolena será executada em 1536, tal como a quinta, Catarina Howard, em 1542. Anote-se ainda no palmarés de Henrique VIII o mandar destruir todos os santuários dedicados a santos em 1540, e acabar os mosteiros católicos que ainda restavam em 1542. Morrerá obeso e necessitando de uma cadeira de rodas para se movimentar em 1547.
Voltemos à morte de Tomás More e oiçamos Fernando de Mello Moser narrá-lo na sua valiosa obra Tomás More e os Caminhos da Perfeição Humana, 1982:«Mais tarde, permaneceria ausente da cerimónia da coroação de Ana Bolema e recusaria assinar a aceitar a Lei da Sucessão, alegando motivos de consciência e invocando, como jurista, que o seu silêncio quanto à exacta natureza desses motivos não podia ser interpretado como rejeição de qualquer título do do soberano - o que, de acordo com legislação recente, significaria um acto de alta traição. Foi preciso um depoimento, mais do que suspeito, de Richard Rich, colaborador de Thomas Cromwell em rápida ascensão política, para que pudesse ser finalmente condenado ao suplício, fazendo então a sua declaração formal sobre a sua posição e sobre o verdadeiro motivo que fora executado. Henrique VIII comutou a pena em simples decapitação, e esta realizou-se em Tower Hill, próximo da Torre de Londres, no dia 6 de Julho de 1535. Segundo a folha volante que circulou em Paris, relatando as circunstâncias da sua morte, as suas últimas palavras foram: "Morro servidor fiel do rei, mas de Deus em primeiro lugar"».
No século XX e XXI Germain Marc'Hadour (bem acompanhado por André Prévost) foi um dos melhores estudiosos de Thomas More e particularmente da sua alma religiosa, tendo-lhe consagrado uma revista Moreana, internacional e de bom nível, onde Pina Martins e Fernando de Mello Moser colaboraram, referindo-o este no seu valioso e último trabalho publicado, Ars Moriendi, Ars Vivendi: Reflexões sobre a Cultura do Renascimento em Inglaterra, Coimbra, 1983, no qual Tomás More é bem abordado quanto à sua têmpera e preparação em vida para a morte. Já postumamente, em 2004, a Fundação Calouste Gulbenkian editou a Dilecta Britannia, Estudos de Cultura Inglesa, com muitas páginas consagradas a Thomas More e Shakespeare
Na sua obra mais importante e perene, a Utopia (1ª edição em
Lovaina, 1516), geradora de tanta reflexão e livro, são transmitidos os ideais duma sociedade mais
equitativa, sábia e não-violenta (embora admitindo a guerra para se adquirirem terras trabalháveis desaproveitadas...), na qual o dinheiro não existe nem a propriedade privada, o ouro é desvalorizado, todos trabalhando e recebendo o que precisam, e onde, como bem sintetiza Fernando de Mello Moser, «a legislação estabelecida por Utopos reconhecia a liberdade em matéria religiosa, excepto no tocante à crença na imortalidade da alma e na subordinação do mundo a um providência divina, sendo a heterodoxia nestes dois pontos tido como grave degradação, relativamente à dignidade da natureza humana», aspectos que infelizmente por diversas circunstância deixaram de predominar nas sociedades, dando azo a que uma série de megalómanos milionários e grupos financeiros e ideológicos negativos estejam a dominar e a enfraquecer tanto a Humanidade como o Humanismo, afunilando as sociedade e países para distopias...
Quem dialoga com Utopos ou Tomás More é um português, provavelmente numa homenagem à gesta dos Descobrimentos, e apresenta-o assim: «Rafael
Hitlodeu (este é o seu nome de família) conhece bastante o latim e sabe o
grego na perfeição. Como se dedicou predominantemente à filosofia,
cultivou a língua de Atenas mais que a de Roma. Eis porque, em questões
de certa importância, vos citará apenas passos de Séneca e de Cícero.
Nasceu em Portugal. Ainda novo, renunciou à fortuna paterna para os
irmãos e levado pela intensa paixão de conhecer mundo, ligou-se a
Américo Vespúcio e seguiu-lhe a sorte. Nem por um instante abandonou
este grande navegador em três das suas quatro últimas viagens, cuja
narrativa é hoje feita em tantos livros... Sem a protecção divina, o seu
temperamento sedento de aventuras ter-lhe-ia sido fatal. Seja como for,
depois de Vespúcio partir, Rafael [nome do navio de Vasco da Gama, na descoberta da rota para a Índia] percorreu com cinco castelhanos
múltiplas regiões, desembarcou como que por milagre em Ceilão, e dali
seguiu para Calecut, onde um navio português, contra todas as
esperanças, o reconduziu ao seu país».
Anote-se que em 2006, saiu a primeira tradução realizada directamente do latim da Utopia, por iniciativa de José Vitorino de Pina Martins. que prefacia a notável tradução do prof. Aires Augusto Nascimento, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian, hoje já numa significativa terceira impressão bem merecida...
John Fischer (1469-1535), bispo de Rochester, que fora o protector de Erasmo durante a sua estadia de dois anos (1512-1513) em Cambdrige, pois era Chanceler da Universidade, decapitado também uns dias antes, em 22-VI (pouco depois de ter sido elevado a cardeal, por raiva do rei), John Colet (1467-1519), da catedral de S. Paulo em Londres e Thomas More representam o humanismo
mais puro de Inglaterra, nunca mais atingido.
E se entre nós na época quinhentista João de Barros o elogiou, serão já no séc. XX José V.
de Pina Martins e Fernando de Melo Moser os que mais amaram, trabalharam e divulgaram em exposições e conferências Thomas More, tendo publicado várias obras que apelam à leitura e aprofundamento, tanto mais que as opressões à liberdade do pensamento, da informação e da consciência são cada vez mais insidiosas e manipuladoras.
Que o exemplo e as energias e bênçãos de todos estes humanistas nos inspirem, pois pelo campo unificado de energia consciência informação que nos une a todos, outrora chamado alma mundi ou ainda corpo místico da Igreja, todos estes seres estão bem despertos e luminosos nos mundos subtis e espirituais, dando-se mesmo o caso de Thomas More e John Fisher terem sido beatificados em 1886 por Leão XIII e canonizados como santos mártires em 1935 pelo papa Pio IX. Anote-se, e diz-nos Mello Moser, que «na década de vinte por ordem de Lenine, o nome de Tomás More foi inscrito no obelisco da Liberdade na Praça Vermelha». Finalmente, em 2000 o papa João Paulo II elegeu Thomas More como patrono celestial do governantes e advogados, seres que bem precisavam de se abrir ao seu génio e equidade corajosa.
Uma das doutrinas espirituais presente
nas tradições religiosas e esotéricas é a do ser humano subtil
verdadeiro ser uma centelha, fragmento ou partícula da
Divindade, presentemente dentro de um corpo animal humano ou humanizado. Emitidos, gerados, criados ou
emanados por Ela, Sol Central Primordial, a
nossa missão principal é a de reconquistarmos tal Consciência, a
de quem somos, e religar-nos à Fonte Divina,
vivendo justa, sábia e amorosa e corajosamente pelo Bem, o Bom e a
Verdade,
Quem mais desenvolveu estes caminhos interiores de
religação foram ao longo dos séculos os shamans, os iniciados, místicos e
mestres, em particular indianos, mas também, entre outros, cristãos, islâmicos, persas e nipónicos,
tal Kurozumi Munetada, sacerdote do Shinto, de quem vamos acercar-nos, e nomeadamente da sua vivênciaforte da unidade do ser humano com a Divindade, Shin
Jin Ittai Setsu.
Nascido em Bizen no kani, em
Kami-Nakano, perto da acastelada Okayama, do clã Ikeda, em
22-XII-1780, de uma família há
mais de quinhentos anos de samurais e sacerdotes shintoístas, considerada mesmo descendente de
Ame-no-Koyane-no-Mikoto, seu pai sendo um sacerdote (negi)
no santuário de Imamuragū, desde cedo entrou numa forte demanda
espiritual que o levou mesmo aos 19 anos a assumir com persistência
querer ser uma incarnação viva de Deus, um ikigami,
umkami vivo, algo que na tradição Shinto se denomina ainda Iki
nagara ni shite Kami, e que nasce do
princípio já mencionado da unidade dos Kami e seres humanos.
Ora para isso, como ele explicou, teria de evitar tudo o que o seu
coração sentisse como errado, o que ele tentou sempre ao longo da
sua vida, recorrendo até algumas vezes à adivinhação com
o I Ching, mas sobretudo seguindo ou obedecendo
a cinco juramentos que se tornarão basilares na sua vida e na dos seus
discípulos: manter-se sempre com fé, não se convencer de ser mais
do que os outros, não aumentar o mal no seu coração ao ver o mal
nos outros, trabalhar sem preguiça pela sua família, seguir sempre
o caminho da Sinceridade.
Por volta de 1806 casou por amor com
Yuko que, pertencendo ao Budismo Shingon (a escola mais esotérica, muito baseada no tantrismo, com seus rituais, mandalas e mantras) teve de declarar por escrito
que desejava identificar-se com o Shinto que o seu marido prosseguia e
aprofundava. Em 1810, o seu pai atingiu os 70 anos de idade
e retirou-se e Kurozumi Munetada, então chamando-se ainda Yugenji, tornou-se o
sacerdote do santuário onde se cultuavam ancestralmente três kamis,
um deles Amaterasu, a divindade solar.
Dois anos depois, quando entrara nos 30 e por ter um amor filial fortíssimo, a súbita morte em poucos dias dos
pais por disenteria, prostrou-o numa longa crise de desânimo e doença, a
insidiosa tuberculose, fazendo-o até desejar a morte, a fim de
acompanhar os pais. Mas subitamente, quando pensava que estava mesmo para morrer ,
realizou que o seu amor filial, destruindo-o, estava a enviá-lo na
direcção errada, pois tal via certamente não agradaria aos pais nem aos
antepassados, decidindo então antes frutificar a herança ancestral e
cultivar um estado de alegria ou divina vitalidade (yo-ki), ou seja, amor e gratidão por tudo.
Será
a 22 de Dezembro, dia do solstício do Inverno, de 1814, que recebe a sua
experiência iluminativa com a deusa ou kami Amaterasu, tendo tal
acontecimento sido denominado tenmei jikiju, a recepção directa
da missão celestial, da qual se sentiu investido a partir de então.
Sentira-se de facto completamente plenificado pela luz e calor de
Amaterasu e de certo modo unirdo a Ela e, cheio de gratidão e alegria,
sentiu-se tornado um kami vivo, um espírito divino consciencializado.
Pouco
depois começou a sua missão de ensinar o Caminho de Amaterasu o mi kami,
surgindo por declaração escrito o seu 1º discípulo (shin-mon) em Fevereiro de 1815. Os sermões ou discursos (koshaku)
sobre qualquer tema ou motivo que surgisse e que lhe permitisse
ser inspirado, as sessões de oração e invocação das forças e bênçãos
solares (yo-ki) e dos kamis e as práticas de cura, algo mágico-magnéticas, o majinai,
realizavam-se em ritmos regulares, seja em sua casa ou onde o
convidavam, com efeitos muitos grandes em pessoas com dúvidas ou
doentes, neste caso por vezes curas de certo modo miraculosas,
granjeando-lhe por isso dedicados ou mesmo directos (monji) discípulos.
Peregrinou
a pé e por transportes seis vezes até ao santuário mãe de Amaterasu e
da família imperial em Ise, de algumas das vezes deixando diários, tendo
passado por várias cidades, templos budistas e santuários Shinto, donde
trouxe conhecimentos que ajudaram a realizar sucessivas
palestras (koshaku) sobre a deusa suprema Amaterasu e o seu santuário de Ise, contagiantes, pois foi cada vez mais sentindo-A como ikimono, presença viva em si. Em
1824 foi confirmado em Kyoto como sacerdote sucessor do seu pai, embora
já o fosse há 10 anos, e recebeu o nome de Sakyo. Entre 1825 e 1828
realizou as Mil Noites de Recolhimento (Sanro), nas quais grande parte da vigília era consagrada aos noritos, orações.
Na
realidade muita da sua actividade sacerdotal e de mestre, além dos
discursos, diálogos e curas, foi orar, recitar ou realizar os ritos
purificadores, tal O Harai Norito, para pessoas que lhe pediam.
Por exemplo, pronunciou-o 7.160 vezes por Koya Kobai que bem precisava
dele, pois escreveu no fim um poema: "Neste mundo regido eternamente
pelos Deuses, raramente vemos um teste pior que este"
Dele
se recolheram muitas histórias extraordinárias, tal como quando se
aproximou de um samurai que, toldado do álcool, já ferira mais
de uma dezena de pessoas e este instantaneamente recuperou a razão e
parou, provavelmente sentindo em Munetada, um samurai também, a presença
do mundo dos Kami. Noutra, quando atravessava a bacia de Kojima em 4 de
Abril de 1846 e foi envolvido por uma tempestade que estava a pôr em
risco a vida dos viajantes: Kurozumi Munetada compôs rápida e eficazmente um
poema e lançou-o ao mar, que se acalmou:
Nami-kaze wo ikade shizumen, Watatsu-Kami, Amatsu-Hi wo shiru hito no norishi ni.
Ó Kami do Mar, como acalmarás o Vento e as Ondas? Quem viaja aqui conhece a Deusa Celestial do Sol."
A
1 de Janeiro de 1850 fez o seu último discurso e a 6 começou a
sentir-se doente, compondo então um poema: «A Lua foi-se, o Sol matinal
percorre agora o horizonte oriental, E eu, sem dúvida, estou no começo
do Caminho». Será todavia só a 7 de Abril de 1850 que o céu se cobrirá, ou seja, que deixará o corpo
físico, o qual calcinado em cinzas será depositado no santuário ancestral, em
Omoto, com a sua mulher Ikoto, que morrera dois anos antes. Deixou
posteridade e muitos discípulos, na altura cerca de mil, e foi
sacralizado como kami em 1856 pelas autoridades shinto de Kyoto com o
título de Daimyojin.
A família imperial veio também a testemunhar o seu apreço por várias
vezes e formas ao seu ensinamento e grupo, o qual apoiou com bastante
entusiasmo e forças o Imperador na sua luta em prol da unificação do
Japão. Em 1885 estava finalizada a edificação de um santuário junto à
sua casa final de Okayama, e que se tornou a sede do grupo.
Esta
sede do grupo, com o decorrer da
crescente urbanização do Japão e a consequente privação da vista do
Sol foi em 1974 trasladada solenemente para um novo local numa
montanha, Shintozan, ainda que o antigo santuário continue
onde se instalara (ou santuarizara) o espírito de Kurozomi Munetada,
considerado um kami humano, cultuando-se nele ainda Amaterasu o-mi kami e os Yao-Yorozu-no-kami, ou seja as mríades de Kami.
Dr.
Ebina Danjo (1856-1937), pensador nipónico convertido ao cristianismo e missionário, descreveu assim Kurozime Munetada: «As origens das ideias
de Munetada não se conseguem traçar [exagera pois lera os clássicos do
Shinto Kojiki, Nihongi, Manyoshu, e alguns chineses como Yi Ching, Chuang Tseu, Lau Tzeu, deste tendo até copiado manualmente o Tao Te Ching],
contudo ele é um carácter enorme que fundou grandes coisas. Quando
consideramos os seus escritos e poemas, ou examinamos as suas acções,
torna-se claro que ele captou algo nos fundamentos do universo e não
podemos duvidar que era um verdadeiro homem vivo (katsu jin).
Durante a sua vida como líder religioso, sempre que subia ao estrado, as
suas palavras fortes e verdadeiras resultavam do poder da deidade ou do
espírito divino (kami) que o habitava.»
Já Charles Williams Hepner, nascido em 1887, o autor da obra incontornável e a quem muito devo, The Kurozumi sect of Shinto, Tokyo, 1935, ao contrário, constata influência das austeridades do Zen, do mistícismo do Shingon, do nacionalismo patriótico de Nichiren (1222-1282), do Judo, além do Taoísmo e do Confucionismo. E aponta vários pensadores, teólogos e escolas do Shinto, que seriam provavelmente fontes das suas ideias, uma posição algo exagerada, pois certamente que semelhanças não querem dizer influências. Eis os nomes desses teorizadores do Shinto: Ichijo Kaneyoshi, Yoshida Kanetomo, Hayashi Razan, Nakae Tojo, Yamazaki Ansai, Ishida Baigan, Nimomiya Sonto ku, Motoori Norinaga, Hirata Atsutane. Todavia, no fim da obra Charles W. Hepner, diminui tal dependência ao escrever que «as ideias deles são em certos pontos similares às de Kurozumi Munetada».
Ora no ensinamento de Kurozumi Munetada que ele denominou o Caminho de Amaterasu o-mi- kami (Amaterasu-o-mi-kami no on michi)
no qual o Sol é visto como a própria Amaterasu, de facto tal como o principal teorizador
do shinto Motoori Norinaga (1730-1801) por essa época também
realçava, observa-se um aprofundamento pioneiro grande de tal realidade e identidade, pois a
sua iluminação abrira-o a um contacto mais íntimo com tal face divina
feminina, Amaterasu o mi kami, o que foi ainda fortificado com a ligação bem cultivada com o
santuário principal de Ise, que muito amava, e de que um belo poema nos
fala:
Kami kaze ya Ise to koko to wa hedatsuredo, Kokodo wa Miya no uchi ni sumu-ran
Ventos providenciais, sim mesmo que Ise esteja muito distante O Coração mora dentro do Santuário.»
Em
verdade, tal relação solar divina com Amaterasu tanto se pode
aprofundar e elevar, como ampliar e completar, pela nossa vida e virtudes. Por exemplo, uma das
palavras chaves do ensinamento, Marukoto, significa "redondeza de mente e coração", e tanto reflecte a imagem do Sol
no céu como em nós, psicologicamente, pela redondeza ou unificação
harmoniosa do que sentimos e pensamos, do coração e da cabeça, no fundo
num corpo-orbe espiritual mais solar. E com tal se relaciona outra qualidade muito valorizada, a sinceridade, e honestidade, Makoto,
que Munetono Kurozumi considerava a primeira virtude, pois só assim se
obtém a transparência e a redondeza, e nos libertamos de mentira e da
hipocrisia. Outra palavra, geradora de melhores ligações ao divino, é Kokoro,
que significa coração, mas também mente, alma, espírito e que para
Munetada era fundamental aprofundar-se na sua dimensão interna e
espiritual, já que por ela nos unimos ao mundo espiritual e à Divindade,
pois Amaterasu o-mi-kami é o coração do Universo e enche-o de luz e de graça.
Alguns
dos poemas falam-nos inspirada e sutricamente desta realização
interior, tal como podemos ouvir em outros cantos da Consciência
Suprema, tal o indiano Astavakra Gita, que traduzi e comentei há uns anos:
Kami Hotoke ono ga Kokoro mo sutete, Ame-Tsuchi no Ta wo Inoru koso Aware narikeri.
Estando os Kami e os Buddhas no teu coração Que tristeza teres de orar noutra parte.
Ame-Tsuchi no Kokoro no ari ka tazunureba, Ono ga Kokoro no Uchi zo arikeru.
Se inquirires acerca do coração do Céu e da Terra Este coração existe sem dúvida dentro do teu.
Outro conceito importante no ensinamento de Munetada Kurozumi é o de Mu,
que significa "não é", potencial, fundamento, invisível, espiritual,
sem limites, Absoluto. Contrapõe-se ao que é, o material, relativo, fenomenal. Tal
deve-nos fazer diminuir o egoísmo (ga), o apego e mesmo a
concepção que se faz de Amaterasu o mikami pode ou deve sair de
limitações antropomórficas e ser realizada como Sol e coração do Cosmos,
ou digamos, como a etimologia indica, o Resplendor Celestial, ou ainda Honshin, o Espírito do Universo.
Jean
Herbert (1897-1980), um dos grande conhecedores e escritores ocidentais do Shinto mais profundo, além do Hinduísmo, abordou e resumiu em duas páginas do seu valioso
livro Aux Sources do Shinto o ensinamento do movimento de
Kurozumi Munetada e delas citaremos o seguinte: «o Kurozumi-kyo, que se dá pela
mais autêntica fé religiosa japonesa, ensina que "a origem de todas as
vidas no Universo é Amaterasu-o-mi-kami, a Deusa Mãe, cujo espírito
solar impregna o universo, dá nascimento a todas as coisas pela sua luz e
calor», e transcreve alguma das frases do fundador, tal: "como é
maravilhoso pensar que entre Amaterasu e os seres humanos nenhum écran
se interpõe". E que «o ser humano é divino. - Filhos, vós que fostes
produzidos pela poderosa Deusa, não entristecei o coração do vosso Kami e
Pai-Mãe.»
Dirá ainda que o Kurozumi não se preocupa tanto com a vida do além pois a sua divisa é "Comunhão (iki-toshi),
impregnada de vitalidade" e que «os seus membros inalam a vitalidade
divina virando-se de manhã para o sol e dirigindo orações a Amaterasu o
mi kami. Inalam o ar fresco como se estivessem a engolir o sol, que é o
Espírito Divino de Deus. E assim chegarão a uma consciência mística da
unidade com Amaterasu».
Charles William Epner, no seu incontornável livro The Kurozumi sect of Shinto, descreve mais detalhadamente a relação profunda obtida
por Munetada com Amaterasu: «A notável experiência de 22 de Dezembro de
1814, quando ele sentiu o espírito do Sol (Go-Yo-Ki) encher o seu
peito e vivificá-lo completamente, não foi só o começo da sua obra como
fundador de uma seita de Shinto que tem o seu nome, mas foi também
muito significativa no enriquecimento das suas ideias sobre a Divindade.
Até então adorara o Sol Nascente; mas o seu Nippai (adoração do sol) tinha sido Yoshai,
adoração à distância. Através desta experiência uma união mística,
entre o Sol considerado como a manifestação de Amaterasu o-mi-kami e
Muneteda foi realizada. A partir de então as virtudes divinas foram por
ele consideradas imanentes, omnipresentes e salutíferas através dos
raios de Luz (Komyo, ou Konsen) do Sol, do Calor (Ondan) na atmosfera, e através do Ar (Kuki) que respiramos. O Espírito do Sol (Go Yo Ki) é portanto Amaterasu O-mi-kami activa através da Luz, Calor e Ar.»
Para
um ser tão ligado ao Sol, à sua Divindade e às suas energias era
natural ensinar certas práticas aos seus discípulos e que, além das
mais directamente relacionadas com a contemplação e a assimilação,
houvesse também as de transmissão e cura. E assim desenvolveram-se as respirações energetizantes solares e a transmissão pelo sopro,
pelas mãos, por fricções de mãos e no corpo, bem como ainda a recitação de orações, o uso de água consagrada ou "kamizada"(Shin sui) diante do santuário seja para ser depois
bebida seja projectada pelo curador, ora no corpo do paciente ora num papel com o seu nome, para além dos talismãs (Shin-pu).
Havia algo de magia (majinai)
no que se realizava ou acontecia e que se baseava na fé no poder de
Amaterasu, que subjaz a todos os seres e que uns podem transmitir ou
intensificar mais nos que mais necessitam. Para Charles William Epner,
que assistiu a algumas sessões com bastante gente, sacerdotes, orações e
cantos, verificar-se-ia o poder de sugestionabilidade e de hipnotismo,
embora também acontecessem curas à distância.
De
uma delas, pelo snr. Fukoda, narra Kurozumi Munetada: «Quando eu rezei
esforçadamente aos Kami do Céu e da Terra, muito misteriosamente ele ele
melhorou e devido ao excesso de gratidão, compus o seguinte poema:
Amaterasu-Kami no Mi-Kokoro Hito-Gokoro Hitotsu mi nareba Iki-Doshi nari.
Quando o coração da Divina Amaterasu e o coração do ser Humano se tornam um, isto é sem dúvida a Vida Eterna.»
Para Munetada "a oração (Inori) significa subir ao Sol (Hi-nori) e para o verdadeiro Eu não há oração frustrada."
O
Sol é Amaterasu-o-mi-kami e é identificada como Ame-Tsuchi (Céu-Terra),
Kokoro (coração), Ten-do (Caminho do Céu), Mu (Não é) e assim orar é um
metodo de autoconheciento e cultura, um acto de nos tornarmos um com
Amaterasu.
Mas
claro, a vida quotidiana tem de ser bem vivenciada, sem apegos nem
irritaçãoou, como dizia, Munetada: «A perfeição significa ser redondo como
o Sol. Isto significa ser um com o augusto coração da Augusta e Divina
Amaterasu. Fazer sofrer o coração da divina Amaterasu é Impureza (Kegare).
Impureza significa secar o espírito ( Ki-hare). Por esta razão, uma
pessoa irritar-se, e causar sofrimento aos seres e coisas é a maior impureza.
Já a gratidão deve ser desenvolvida pois por ela tudo o que acontece é
uma bênção: «Namigoto mo Ten-Chi to tomo ni tanoshimu. Makoto ni makoto ni Arigatai koyo bakari goza-soro. Alegra-te com o Céu e a Terra em Tudo. Em verdade, em verdade tudo é uma causa de gratidão.»
Acrescentemos alguns dos poemas "mântricos ou kotodamicos" de Kurozumi Munetada, que ecoam as suas realizações e unidade:
«Amaterasu - Kami to Hito to wa Hedate-naku Sugu ni Kami zo to omo Ureshisa». Oh, a alegria de pensar que a Deusa brilhante celestial e o ser humano são Um, não separado e ao mesmo tempo Divino.»
Kane-gane
moshi-age-soro tori, waga Hon-Shin wa Amaterasu ô Gami no Bun Shin
nareba, Kokoro no Kami wo daiji ni tsukamatsuri-soraeba, kore so makoto
no Kokoro nari.
«Como já disse repetidamente, os nossos corações
são partes da Divina Amaterasu; e se nós prestamos atenção ou obediência
à Divindade do coração, isso é [ou nisso se manifesta] então o verdadeiro coração.»
Katachi
mo Ten-Chi no shizen to umi-tamo Katachi nareba, ware to muri ni
sutsuru ni oyobi-mosazu, nanigoto mo Ten-chi to tomo ni tanoshimu. «Se
os nossos corpos são também corpos nascidos naturalmente do Céu e da
Terra, não nos devemos abandonar não razoavelmente; mas em todas as
coisas alegrar-nos com o Céu e a Terra.»
Ware-ware to omo wag Mi wa Ten no Ware/ Waga mono tote wa Ichi-butsu mo nashi «Eu próprio que me chamo a mim mesmo, é o Eu Celestial/ Eu não ouso chamar a uma só coisa, minha.»
Shoshi Michi ni wa goza-naku, Michi wa Hi-no Kami no On-Michini Goz-za-soro. «O Caminho não é o meu, mas o Caminho da Divindade do Sol.»
Além da sua intensa e real ligação íntima a Amaterasu O mi kami, a divindade não só do Sol mas também intuída como a Deusa Mãe do Universo ou mesmo o Absoluto, Munetada Kurozima foi sempre um ser de amor, sempre disponível para ouvir, orar ou curar quem quer lhe pedisse, e nesse sentido, fundamentando-o, corre este seu poema, antes de poder ouvir no vídeo alguns deles, em japonês aportuguesado:
Tachi-muko Hito no Kokoro wa Kagami nari. Ono ga Sugata wo utsushite ya min. O coração da pessoa diante de ti tem a forma de espelho. Contempla reflectida nele a tua própria face.»
Concluamos esta pequena homenagem a Munetada Kurozumi:
«Michi wa mitsuru nari. Amaterasu-O-mi-kami no Go-Bunshin no michite kakenu yo asobasaru-bekusoro.» «O Caminho significa estar repleto. Como partes honrosas separadas de Amaterasu-O-mi-Kami, devemos encher-nos plenamente do seu espírito.»