segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Diálogos com o prof. Pina Martins enquanto catalogava a sua Biblioteca. 2ª transcrição, do Diário de 2001-2002.

  Do meu Diário de 2001-2002 eis a segunda transcrição respeitantes aos diálogos com José V. de Pina Martins enquanto fazia uma catalogação rápida da sua Biblioteca de Estudos Humanísticos.
«10-11-01. Catalogações na biblioteca do prof. Pina Martins, três horas e meia. Explicou-me mais localizações temática e de autores, com algumas hesitações pela sua deficiente visão actual.
Explicou as características de alguns autores que eu desconhecia ou pouco sabia, tal como o De ragguagli di Parnaso, de Traiano Boccalini (1556-1613), que tem em grande estima, tanto mais que há um manuscrito do séc. XVII português dumas cortes de Apolo passadas em Sintra e que foram influenciadas por essa obra tanto satírca como espiritual, que eu já sabia que teria sido lida por Valentim Andreia (1586-1654) e os seus manifestos Rosa Cruz e a sua utópica Reipublicae Christianopolitanae descriptio (1619). Houve uma tradução no séc. XVII espanhola. Aprecia bem este autor de certo modo utópico, tanto mais que na sua obra põe Thomas More a jurar que a forma de acabarem as heresias era o rei de Castela não sair do seu reino, pois Boccalini era anti-castelhano.
                                       
              O olhar para toda a eternidade de Thomas More, émulo de Pico della Mirandola
Comentou uma edição de Petrarca em francês, Mon Secret, autor que ela aprecia muito considerando-o primeiro humanista, e do qual tem uma edição muito rara de Siena, 1515, Il Secreto e, lamentando-me eu que não houvesse traduções para português referiu que no séc. XVI o frade anónimo que compôs a obra religiosa mística Horto do Esposo (que eu já lera partes, na reedição no séc. XX, por Augusto Magne), traduziu muitas páginas do Tratado da vida solitária de Petraca, incluindo-as discretamente no interior dessa obra mística. Quem trabalhou nela foi o padre Mário Martins, amigo de José Pina Martins e da Dalila Pereira da Costa que já mo fez conhecer na residência e biblioteca dos Jesuítas, à Lapa, e com quem dialoguei amistosamente.
Contou-me um dos seus melhores negócios quando comprou uma grande gravura de Portugal a um livreiro italiano por 200 mil e em Portugal trocou-a ao Américo F. Marques, por 5 contos de livros antigos, dos quais um o "Crenus" [?] muito valioso nos USA, uma edição dos Retóricos gregos, Aldina, isto é do impressor Aldo Manucio, e outras obras. O "Cresus" [?] vendeu logo ao livreiro Tavares de Carvalho, que se iniciava então, pela quantia que lhe custou comprar um carro Peugeot.
                                  
A marca tipográfica aldina: Festina Lenta, Apressa-te lentamente, dito clássico que foi bem explicado por Erasmo.
A impressão aldina levou-a para Itália e perguntou ao livreiro que lhe vendera a gravura se a tinha. Ele concordou que era muito rara, e consultando a bibliografia mais o confirmou , admitindo que poderia valer uns 4 ou 5 milhões de liras. Pina Martins mostrou-lhe então a obra e disse-lhe que a propunha trocar e apenas por meio-milhão de liras em livros de bibliografia. «- Oh, ainda assim é muito», mas depois resolveu aceitar, tanto mais que Pina argumentara que pelos menos ele conseguiria vender os Retóricos gregos por um milhão ou dois. Assim pode escolher vários livros bons de bibliografia que mandou para Portugal e que estão alguns em cima duma estante que me indica. Perguntando-lhe eu, se ele conseguira fazer circular o livro, responde-me que sim, o livreiro vendera logo depois a edição aldina...
Há saída mostrou-me uma das estantes onde está mais a secção bibliográfica, que eu pouco tenho nem sei muito. E disse-me: «-É a primeira pessoa que está a conhecer os segredos desta casa. Até agora ninguém os sabia». Eu corrigi para biblioteca, mas ele respondeu ainda como casa.
 
Fotografia inédita da sala ocidental, com Pico della Mirandola.
Saudei o Pico della Mirandola diante da bela pintura antiga, bem como os autores, livros e a sabedoria da sala, por vezes, quando levava ou trazia das estante os livros que ia catalogando, inclinando-me, com gratidão no coração...
Vou em 263 livros catalogados, tendo trabalhado 13 horas e meia, quase vinte livros descritos por hora, média de um por três minutos, e às vezes custa-me não poder estar a observar pessoalmente o livro, sobretudo quando não o conhecendo e sentindo que ele é bom não descubro logo o modo de o valorizar como mais interessante neste ou naquele aspecto, e a merecer eventualmente tomar nota e investigar.
Também me custa catalogar os grandes livros de homenagem a algum autor ou acontecimento histórico, com contributos de várias pessoas conhecidas e desconhecidas, os quais vejo no índice rapidamente sem dar para perceber bem o que vale mais neles, excepto quando algum é mesmo muito significativo. Mesmo assim nestes livros colectivos, tenho anotado de modo geral os que sendo do Renascimento, em contraposição aos medievais, têm mais artigos com valor para mim e os meus estudos.
I Trionfi, de Petrarca. O carro da Fama.
 Segunda 12-11-01.
Trabalhei das 15h às 18 30  catalogando cerca de 90 livros, alguns mesmo bons, tais os de Francesco Petrarca e de Giannozzo Manetti. Trocou comigo os Trionfi de Petrarca, numa edição facsimilada, por uma edição pequena do séc. XIX do Garcilaso de la Vega que  eu trouxera de Madrid há dias.
Um dos exemplares quinhentistas de Petrarca. com uma bela encadernação seiscentista, recebeu do Américo F. Marques,  da rua do Alecrim, na  tal troca pela gravura do livreiro italiano. 
 Contou como o seu grande amigo Eugenio Asensio dizia que comia os livros pois tinha que ir vendendo alguns para sobreviver e assim uma vez juntou uns doze livros óptimos que queria vender por 3500 contos. O livreiro António Tavares de Carvalho só deu 3 mil mas já Ernesto Martins, da Biblarte, em frente ao jardim de Alcântara, consultado aceitou a proposta. Pina Martins vira entre os doze  um de Petrarca que lhe interessava, mas Ernesto Martins apesar de saber que era dos menos valiosos atreveu-se implacavelmente a pedir 700 contos, tendo-os ainda há pouco comprado graças ao Pina Martins que lhe tinha arranjado o negócio.
Avisou-me que quanto ao Toni Tavares de Carvalho, sobretudo, mas também a uma das pessoas do Manuscrito Histórico, tem que se ter muito cuidado com o que se diz senão no outro dia toda a gente sabe. Uma vez mostrou a Tavares de Carvalho um livro  que comprara há uns anos ao livreiro Leo Olschki, especialista do Renascimento, por certo preço. Tavares de Carvalho, que tinha o mesmo livro, atreveu-se a escrever ao Leo Olschki dizendo que tinha o mesmo livro  que Olschki vendera a Pina Martins há uns anos pelo tal preço e que estava disposto a vendê-lo pelo mesmo, o que Pina Martins achou algo deselegante.
Beijei e toquei na testa com dois dos livros mais interessante e sábios, o de Gionnozzo Manetti, e um de Petrarca, e é mesmo bom ao catalogar ir avançando pelo meio de obras tão boas e, ao manuseá-las e conhecê-las um pouco, ir perdendo o desejo ou a necessidade de os possuirmos...
Dia[?]... Mais uma manhã de trabalho, mas apenas de 2 horas, e viemos  para a Baixa Chiado de metropolitano. Perfiz as 22 horas de trabalho e disse-me que o facto de lhe estar a catalogar a biblioteca merecia uma condecoração, replicando-lhe eu que era suficiente a sabedoria que eu podia sentir no peito apenas ao contactar o que está por detrás e dentro destes livros. Beijei um e toquei na cabeça com outro que senti mais valiosos espiritualmente.
Damião de Goes, erasmiano e pioneiro defensor dos direitos humanos.
Hoje,  Quinta-feira, foram apenas 2:15 de trabalho. Algum diálogo sobre o texto do Benefício de Cristo, de Lorenzo Valla (1407-1457), um dos primeiros textos do humanismo crítico da versão oficial do começo de Cristianismo e sobre Damião de Goes, a quem Erasmo depois de o receber por umas semanas em casa, recomendara ir aperfeiçoar o seu latim em Pádua, o que ele cumpriu e com resultados satisfatórios. 
Em relação à morte misteriosa de Damião de Goes, em 30 de Janeiro de 1574, mal acabara de sair da longa prisão inquisitorial, não pensa que tenha sido assassinado, mas terá tombado sob a lareira. A mim custa-me a crer tal, e acho que podem ter-lhe batido e empurrado já que ele não era persona grata seja à casa de Bragança, seja aos jesuítas e familiares do Santo Oficio mais fanáticos. D. João III protegera-o enquanto esteve vivo, mas no tempo da regência da sua mulher a rainha D. Catarina fora perseguido ferozmente pela Inquisição, sobretudo pelo jesuíta Simão Rodrigues, que o denunciou por mais de uma vez ao longo de anos.
Marcel Battailon e Pina Martins, em Paris.
Hoje dia 30 de Janeiro cataloguei quatro horas e conversou-se intermitentemente com intensidade. A propósito do livro de Raymond Cantel, Prophétisme et Messianisme dans l'Oeuvre d´António Vieira, disse que ele era uma pessoa séria e que fora um trabalho de doutoramento bom, a que assistira. Presidia o Marcel Bataillon e participava também Haubron ou Aubrion (?), pessoa pouco séria, ainda que inteligente e esperta, mas pouco trabalhadora, o qual começou a criticar fortemente a obra do P. António Vieira considerando-o muito inferior aos pregadores franceses da época, argumentando ainda com outras críticas ao que Raymond Cantel procurava resp0nder com humildade. I. Revah [outro investigador da história e da Inquisição portuguesa], que assistia no público ria-se criticamente em relação às estupidezes que iam sendo ditas dando mesmo nas vistas, pelo que Marcel Bataillon, que tinha sido quem introduzira I. S. Revah na Sorbonne, teve mesmo de lhe fazer sinal com o dedo sobre os lábios. Finda a sua fala Aubrion (?) e toda a gente fica estarrecida com a demolição do medíocre P. António Vieira, mas eis que Marcel Bataillon toma a palavra e diz que António Vieira foi o melhor orador da Europa naquela época, arrasando as críticas de Aubrion (?), que assim emudeceu.
Pina Martins elogiou Ludovico Antonio Muratori, um humilde bibliotecário que no entanto Newton levara para sócio da mais importante academia científica inglesa, pelos seus grandes conhecimentos e qualidade. Usava o pseudónimo Lamindius Pritanius.
Damião de Goes, numa gravura antiga, tida como fidedigna.
Conheceu o historiador Mário Sampaio Ribeiro que era excessivamente de "direita" ou conservador, não gostando por exemplo de Damião de Goes porque o considerava de esquerda. O Joaquim Veríssimo Serrão, que gostava de gozar, quando o via dizia-lhe que tinha descoberto nas suas investigações documentos que provavam que o rei andara nove meses antes de Damião de Goes ter nascido na zona onde ele nasceu, indício que Mário Sampaio Ribeiro muito apreciava pois tinha a tese de que Goes era um bastardo do rei D. João II.
Acerca de um livro sobre os judeus, Pina Martins disse que antes de se casar com a Primula namorara um jovem judia, e que esta lhe pedira que dissesse à sua família que era judeu. Foi acusado dum certo filo-judaísmo mas considera exagerada ou muito violenta a política de força do estado de Israel. É possível que tenha como muitos portugueses algum sangue judeu, mas do lado dos Pinas, que vem dos Pinheiro, descende de Rui de Pina, e dos Martins também não descobriu sangue judaico. A sua mãe viveu até aos 94 anos, e aos trinta anos já tinha os cabelos brancos, mas sempre foi saudável.
Assistiu na Universidade de Coimbra a um doutoramento honoris causa de alguém, que não registei bem o nome, mas nessa altura estava a uma grande distância dos sábios. Hoje é que está tudo muito mais nivelado.
Criticou a atitude do historiador de arte e académico José Augusto França por ter depositado duas bolas negras em recentes votações para sócio da Academia das Ciências dum russo da Academia Soviética, que muito tem feito pela cultura portuguesa na Rússia, e de Michel Renaud, um estudioso da religião. Mas José Augusto França, uma pessoa algo má, não aceita nem a religião nem os actuais soviéticos...
Recusou os convites para almoçar com o primeiro ministro António Guterres e jantar com o presidente da República Jorge Sampaio, agora que vinha cá o Presidente da Itália. Ainda argumentei que poderia encontrar algumas pessoas interessantes, mas não, diz que só lá estão políticos....

4-12. Catalogo das 15:20 às 18:20. Falou da Augusta Faria Gersão Ventura, a autora de estudos sobre Gil Vicente, nomeadamente a astronomia, uma pessoa séria que se vestia como uma senhora do século XIX com a saia até ao joelho. O seu marido era o professor de grego e os alunos chamavam-lhe o "Faraó". Costumava no fim da aula perguntar ao Pina Martins o que achara da aula, respondendo ele que a considerava muito perfeita muito calma e luminosa. Isso mesmo, replicou ele, esforço-me por falar para a pessoa mais fraca que haja na aula.
Mas no fim do ano lectivo, quando Pina Martins queria ir logo de férias, sem ter prestar exame graças à boa média que obtivera, não o deixou, obrigando-o a redigir e apresentar um trabalho sobre os coros das tragédias gregas. Quando voltou de férias perguntou ao assistente que nota tinha e recebeu a resposta que fora a melhor de todas e que o Faraó explicara que Pina Martins tinha aguentado um mês de labor e que fora o único que apresentara um trabalho.
                                       
Em relação ao bibliófilo e bibliógrafo Visconde da Trindade considera-o um auto-didacta, um curioso, mas como tinha um tão grande amor aos livros a sua obra torna-se interessante ou valiosa.
Quanto ao investigador e professor de Coimbra  José Sebastião da Silva Dias (1916-1994), autor de obras com valor sobre a política cultural e a religiosidade nos séculos XV e XVI, formara-se em Direito mas não sabia bem latim pelo que tentava traduzir textos ou pedia a outros que fizessem por ele.
Quanto a Teófilo Braga, que escreveu muito e chegou a Presidente da República, era mau como pessoa e não percebeu nada de Sá de Miranda. Com efeito, com Antero de Quental, e outras pessoas teve procedimentos pouco justos ou maldosos mesmo.
Sá de Miranda, num desenho que pertenceu a Pina Martins e que me ofereceu.
Domingo, 9-12-2001 23 25 m.
Trabalhei hoje à tarde ,mais quatro horas, tendo chegado assim às 50 horas de trabalho. Dos livros que ia catalogando e das respostas que me ia dando sobre quem eram os autores, registei: Epifânio Dias (1841-1916, latinista e camoneano) era uma pessoa que sabia mas era muito convencido e orgulhoso. E foi já no leito da morte que recebeu a obra do Rebelo Gonçalves (1907-1982) sobre uma edição comentada de Camões na qual era criticado, apenas textualmente, mas mostrando os seus erros, recebendo assim no fim da vida uma pequena lição de humildade.
O historiador Anselmo Bramcamp Freire (1849-1921) era algo anticlerical e bastante contra a rainha Dona Leonor, pensando que tinha sido ela que envenenara o marido D. João II, mas mais tarde quando um médico provou que isso era impossível, admitiu que tinha errado. A sua melhor obra foi o manter ou fundar o Archivo Historico Português responsável por inúmeras publicações valiosas ao longo de muitos anos (1903-1917).
                                     
Mostrou-me o misterioso alfabeto moriano, que foi impresso numa das melhores edições da Utopia, a de 1518, impressa em Basileia pelo grande impressor humanista Ioannes Froben, sob a direcção de Erasmo, demonstrando por esquema a sua formação lógico pictórica, inventada com originalidade e não seguindo a ideia, como queria um investigador russo, que fora influenciada pelo antigo eslavo.
Um dos trabalhos importantes do prolífero investigador Sousa Viterbo (1845-1910), do qual tem várias obras na biblioteca, é o da sua recolha de poesias portuguesas existentes em livros espanhóis antigos, mas, por exemplo, não registou uma de Sá de Miranda (autor muito amado e estudado por Pina Martins) presente numa edição quinhentista espanhola de Garcilaso de la Vega.
                             
Marca do impressor Petrus Zangrius, de Lovaina (numa edição das obras completas de Thomas More), simbolizando a fonte do Amor Divino, derramando-se dos que abrem o seu peito a Ele.
Hoje, 18 de Janeiro, Pina Martins disse-me à entrada da sua biblioteca que fazia anos, depois de me ter convidado para um almoço na Quarta feira no Círculo Eça de Queirós, ao Chiado, advertindo-me que é preciso levar gravata ou então usar uma das que eles tem à entrada. Será o festejo de tal data. Contou que publicou cerca de 150 livros, seus e de outros, nos dez anos que foi Director do Centro Cultural de Paris, da Fundação Calouste Gulbenkian. Augurei-lhe bons projectos e realizações para o novo ano, o dos seus 81 anos, já que ainda está a investigar e a escrever...
                                        
Emblema com lema, original, de José V. de Pina para os seus primeiros livros: "Dirige o teu olhar para ti mesmo". Ou pratica o auto-conhecimento, a meditação, a contemplação e abre o teu olho interior para o sol espiritual e divino.

domingo, 19 de janeiro de 2020

A "Utopia" de Thomas More e Pina Martins. Apresentação e gravação de uma "Introdução", de 1977.

                                        
Como sabemos Thomas More (1478-1535, em cima num desenho de Hans Holbein) foi uma tão grande alma que, destacando-se como advogado e escritor e tendo chegado a Chanceler do reino da Inglaterra, acabou por ser executado ou martirizado como cristão e humanista, ao recusar submeter-se às medidas que considerava injustas do rei Henrique VIII, seja a anulação do seu casamento com Catarina de Aragão, seja a sua separação da Igreja de Roma e passar a ser a cabeça suprema da Igreja de Inglaterra. No dizer de Pina Martins, foi a «vítima da crueldade de um abominável tirano», secundando o que escrevera na época o Cardeal Reginald Pole (1500-1558), irenista (pacifista) e erasmiano:« Meus queridos compatriotas da cidade de Londres, vós matastes, matastes o melhor dos Ingleses».
3ª edição da Utopia, impressa em Basileia, por Ioannes Froben, 1518, com moldura xilografica de Hans Holbein.
Se a santidade que lhe foi reconhecida pelo Papa Pio XI em 1935, em conjunto com outro notável humanista na mesma altura executado, John Fisher, terá auxiliado a não nos esquecermos tanto da sua alma, já a sua obra Utopia, permanecerá perenemente como um voo audacioso de uma humanidade melhor, e a palavra Utopia  avatarizou-se ao longo dos séculos em muitas das mais pioneiras visões e criatividades literárias, artísticas e sociais.
O navegador português Rafael Hitlodeu, no canto esquerdo, aponta-nos a ilha da Utopia
Entre nós Pina Martins foi desde jovem uma alma em grande busca de um ser humano e de uma sociedade melhores e rapidamente foi discernindo, por entre as leituras que foram modelando o seu ser, o filão dos humanistas e, particularmente, de três deles, Giovanni Pico della Mirandola, Erasmo e Thomas More, que acabam por se tornar os seus grandes inspiradores, a eles dedicando muitas horas e páginas, palavras e actos, que se perenizaram em publicações, hoje dispersas, talvez um dia unificadas nas obras completas de José V. de Pina  Martins (1920-2010) editadas pela Fundação Calouste Gulbenkian que ele serviu incomparavelmente bem. E que aliás já o homenageou em 2015 com um exposição, José V. de Pina Martins, uma Biblioteca Humanista. Os objectos procuram aqueles que os amam, com curadoria de Vanda Anastácio, tendo também nessa homenagem participado Silvina Pereira com um espectáculo Livros que falam.
Pina Martins, considerando a Utopia «um dos livros fundadores da cultura europeia moderna», impulsionou uma tradução portuguesa do original latino, o que foi sabiamente realizado por Aires do Nascimento e editada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2006, e para a qual escreveu uma valiosa introdução,  mas já publicara algumas obras morianas anteriormente,  tal o de L'Utopie,  catalogue de L'Exposition Bibliographique au Centre Culturel Portugais, Paris,  1977.In-4ºgr. de 61 págs., muito ilustrado e hoje raro de se encontrar.  Resolvemos então da sua Introduction a este catálogo lermos, traduzindo para português e gravando, a parte inicial e substancial, como se poderá ouvir no fim...
                                                   
Também deu à luz em 1979, como separata do vol. XIII dos Arquivos do Centro Cultural Português em Paris (1978) L' Utopie de Thomas More et L'Humanisme,  que fora a  comunicação apresentada à Academia de Ciências em 22 de Junho de 1978 nas comemorações do V Centenário do nascimento de Thomas More. E ainda no mesmo ano, em Lisboa, A Utopia de Thomas More como texto de Humanismo, onde destaca os três preceitos dos Utopianos: "1) Igualdade dos cidadãos no bem e no mal. 2) Amor persistente da paz social e civil (entre os cidadãos e o povos). 3) Desprezo do ouro e do dinheiro."
Em 1982, em Paris,  de novo em separata dos Arquivos do Centro Cultural Português, l'Utopie de Thomas More au Portugal (XVIº et début du XVIIº siècle), onde transcreve os ecos em Damião de Goes, Jerónimo Osório, João de Barros, Frei Heitor Pinto e Index da Inquisição (1581 e 1624) 
Publica também em 1983, em Lisboa, ,num in-4º de 93 págs., numa bela edição bem ilustrada, Thomas More au Portugal,  em parceria com Fernando de Mello Moser, dedicado a Germain March'Hadour.
E em 1998 sai à luz  A Vtopia. I de Thomas More e o Hvmanismo Vtópico 1485-1998, catálogo de uma síntese biblio-iconográfica. Lisboa, Imprensa Nacional, in-4º gr. de 168 págs., com um notável Estudo introdutório e notas bibliográficas, onde destaca alguns dos 90 cimélios expostos e descritos, nomeadamente «a minúscula jóia bibliográfica em pequenino formato [32º] (Colónia, 1629), prova evidente de que o livro circulava como vade-mecum de homens cultos...» 
As obras escolhidas para a mostra e catálogo (para cuja elaboração colaboraram Maria Valentina Sul Mendes, Maria da Graça Garcia e Margarida Cunha) faziam parte da Biblioteca Nacional e da sua Biblioteca de Estudos Humanísticos, hoje preservada no seu núcleo essencial na Faculdade de Letras de Lisboa, onde ele próprio fora professor-bibliotecário e professor catedrático.
Em 2005 dá à luz a sua grande obra moriana, num in-fólio oceânico, de XIII-475 páginas, ou como ele descreve, em "grand format, papel pergaminho Nihil Candidus", embora haja também em tamanho normal, a Utopia III, relato em diálogo sobre o modo de vida, educação, usos costumes, em finais do século XX do povo cujas leis e civilização descreveu fielmente nos inícios do século XVI o insigne Thomas More, inserindo-se assim plenamente na tradição humanista utópica. 
 Celebrando-se nestes dias o centenário do aniversário de José V. de Pina Martins, ex-Presidente da Academia das Ciências, que teve nele o seu mais brilhante humanista e presidente da Secção de Letras, e que o comemorará no dia 23, numa sessão ordinária, resolvi, como trabalhei e convivi com ele cerca de 17 anos, escrever alguns textos e hoje, dia 19, gravar a tradução, que fiz enquanto lia, da sua Introduction ao L'Utopie, catalogue de L'Exposition Bibliographique, de 1977, com alguns breves comentários.
Acrescentemos alguns outros ecos de Thomas More em Portugal, bem recenseados e comentados por Fernando de Mello Moser e José V. de Pina Martins nas obras já citadas, transcrevendo dessa obra em co-autoria as palavras do historiador  João de Barros (1496-1570), na Década III, referentes às Utopias: «porque deu a entender a verdade aos sapientes debaixo de uma nuvem de ficção poética», «Fábula moderna é a Utopia de Thomas Moro; mas nela quis doutrinar os Inglezes como se haviam de governar». 
E a homenagem poética que o sábio humanista e estrangeirado António Gouveia (1510-1566), nos seus ora cáusticos ora ternos Epigrammata dedica ao autor da Utopia:«Foi o vosso valor, Thomas More, que foi a causa da vossa perda. Mas é ela também que vos assegura uma glória  eterna. A inocência, que não serviu de qualquer socorro em vida,  protege agora as vossas cinzas»
Que esta glória eterna, doxa, em grego, e que é a luz espiritual, o tal corpo de glória, que devemos fazer renascer e intensificar-se em vida e para além da morte, esteja bem brilhante e dinâmico em Thomas More e John Fisher,  João de Barros e António Gouveia, Fernando de Mello Moser e José V. de Pina Martins, com toda a tradição imortal de filosofia perene dos Humanistas são os nossos votos finais... 
Segue-se o vídeo:
                           

sábado, 18 de janeiro de 2020

Catalogações na Biblioteca de Pina Martins e diálogos. 1ª transcrição, do Diário de 2001


Nos anos de 2001 e 2002 cataloguei abreviadamente a  Biblioteca de Pina Martins a seu pedido e em geral duas vezes por semana ia a sua casa ou subia directamente para o andar da biblioteca e durante cerca de 3 ou 4 horas desempenhava-me dessa tarefa, com ele a trabalhar na sala ao lado, ou então conversando simultaneamente com ele sobre os livros que descrevia. Como mantenho a escrita de diário desde os meus 19 ou 20 anos, frequentemente ao chegar a casa transcrevia da memória cordial alguns aspectos mais valiosos ou curiosos. E partilho agora o primeiro neste dia 18 do XI de 2020, dia em que comemoramos exactamente o 100º aniversário desta grande alma que entre nós passou como José Vitorino de Pina Martins, na fotografia já nos seus últimos tempos terrenos, sob as bênçãos de Santo Erasmo. Muita gratidão por tantos belos momentos passados em convívio bibliófilo, humanista e espiritual. Muita Luz, Amor e Presença Divina nele...
Este é um dos primeiros registos: terça-feira, 6 do XI de 2001, catalogação das 15:15  às 18:45. 
Este sábio [Pina Martins] contou-me como tendo sete anos foi levado pelo prior da sua freguesia a visitar o senhor lente e padre António Garcia Ribeiro Vasconcelos, que morava perto da sua casa natal. Lá foram pelos montes e ele recebeu-os afavelmente, tendo uma luneta astronómica apontada para além dos montes. O prior perguntou-lhe se gostava então de contemplar as estrelas, respondendo ele que sim, mas que também observava outras coisas, entre as quais umas muito curiosas, sobretudo aos fins de semana, entre os milheirais. 


                           Gravura do famoso e belo livro Sonho de Polifilo
Não chegou a Bispo, porque as más línguas queixavam-se ou denunciaram-no mesmo como tendo não só uma governanta mas duas, ao que ele respondera que eram maldades pois elas eram irmãs.
Escreveu uma gramática que se vendia para todos os seminários, liceus e escolas, mas como a Livraria Bertrand não escrevia a data da impressão na gramática latina, uma vez ao fim de alguns anos veio a Lisboa para ver se recebia algum dinheiro. Levaram-no a um armazém mostrando-lhe centenas de exemplares, das muitas edições que faziam sem declarar e assim não lhe pagavam porque não se vendiam. Abandonou a escrita...
E esta história nasceu de eu estar a catalogar uma antologia literária italiana, também não datada, e que fica como “s/d,” na ficha de catalogação... 
 Quando cheguei na estante ao livro de Robert Klein, Le Procés de Savonarola, Pina Martins mostrou-se indignado pela comparação feita por este autor protestante de Savonarola com Calvino, considerando um livro pouco científico. Preferia claramente o dominicano italiano ao reformista e embora Savonarola pregasse fortemente contra a sensualidade e as vaidades, não chegou a ser responsável pela execução de condenados por razões religiosas, tal como foi Calvino, antes sendo ele próprio queimado vivo.
Já quanto a livros críticos contou a história do livreiro italiano Doti, que uma vez ao passar uma bela rapariga italiana disse-lhe: “aquilo é que era um incunábulo”, replicando-lhe Pina Martins que ele Doti não sabia o que era um incunábulo, um livro do princípio da tipografia, pois o que ele estava a gostar era uma edição crítica, pois de facto esta estava muito bem apresentada e melhorada. Eu contestei dizendo que a jovem seria antes comparável a uma boa edição moderna ou até luxuosa.
Do catálogo que chegou anunciando próxima feira do livro antigo em Madrid reparou num livro que o interessaria, o de Pedro Ciruelo, sobre matemática, e explicou uma das razões do seu interesse: um dia seu grande amigo e investigador Eugenio Asensio dissera-lhe que Pedro Ciruelo escrevera que as três coisas mais importantes ou fantásticas da sua época eram o descobrimento dos caracteres móveis, o descobrimento do Novo Mundo e Giovanni Pico della Mirandola. 

Referiu ainda do Ribeiro Vasconcelos, que conta, na sua Utopia III, que a Bocara é a Buraca perto de Lisboa, local onde Pina Martins se encontrou depois de 1974 com o Cardeal Cerejeira, que este lhe contara como Garcia Ribeiro Vasconcelos era homem algo dado as dignidades e que um dia lhe viera provar que havia possibilidade de se reavivarem os arcediagos de Penela e de outra terra, que conviriam a ele e ao Cerejeira e que este se rira e dissera-lhe não percebo nada disso mas, se quiser, que seja. E assim foi Garcia Ribeiro nomeado  arcediago, pois tinha também o porte e os gestos adequados.
Os momentos mais sábios deste encontro de hoje foram os consagrados ao Pico della Mirandola e a Savonarola. Este último conservaria mesmo no fim da sua vida o estudo intelectual e filosófico, e não estava só numa franciscanismo e radicalismo ascético cristão, como eu admitira. E se Savonarola dissera uns dias depois de Pico morrer praticamente nos seus braços dizendo que ele era o homem mais extraordinário da época, mas que não estava no Céu, pois assim lho dissera Deus, estando apenas no Purgatório, porque não seguira a sua vocação, esta afirmação (e se quisermos intuição) de Savonarola resultava do facto de Giovanni Pico se ter recusado  sempre a entrar na ordem dominicana, preferindo manter-se um intrépido cavaleiro do amor, da filosofia perene, da ligação interior a Deus, pensei eu...  
  E quando Pina Martins realçou a importância da obra de Pico della Mirandola e dos seus efeitos ao longo dos séculos, rebatendo a minha ideia que a sua morte precoce também contribuíra para essa atracção que gerou em tanta gente, pôs a questão do quanto  poderia ele ter produzido senão morresse apenas com 30 anos mas com 70 ou mais... 
Eu disse-lhe então que se calhar a sua morte justificava-se porque ele atingira o essencial, o auto-conhecimento espiritual e a ligação com Deus e ainda que nós gostássemos que ele escrevesse, comparasse e investigasse muito mais, isso era o mais importante e por consequência já não precisava de estar na terra e tinha sido arrebatado ao convívio humano. Não valorizamos tanto esta ligação ou religação, mas é bem possível que ela seja o mais importante e quem o conseguiu pode partir do corpo humano animal para o mundo espiritual e divino com o mais importante cumprido. 

                                 Marsilio Ficino, Pico della Mirandola e Angelo Poliziano
Discutimos ainda se há penas de condenação ou danação eterna, o que Pico, na época e na linha de Orígenes, recusou, sendo tal  tese ou proposição considerada herética.  Eu preferi admitir que haja certas pessoas que pela sua oposição e rejeição de Deus e do bem, e depois fazendo tanto mal ou tornando-se tão más e cheias de ódio, se possam auto-destruir enquanto almas individualizadas, regressando o seu espírito ao Espírito original total, mas  Pina Martins acha que o Deus de Amor não pode destruir o que criou imortal, replicando eu que não é Ele que destrói, mas sim as próprias pessoas que se destroem assim como quem põe a mão no fogo se queima. 
O Y pitagórico: a  cada momento sabermos escolher que fogo, que amor, que caminho esplende em nós...

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Humanismo, Irenismo e universalismo no Renascimento e nos Humanistas Portugueses. No centenário do nascimento do prof. Pina Martins.

Com o Humanismo, nos séc. XV e XVI, houve em verdade um renascer civilizacional, graças à antiga sabedoria greco-latina ter sido reaprendida e aprofundada nos seus melhores aspectos, tendendo a afirmar a dignidade humana, o seu livre arbítrio e a cognoscibilidade e aplicabilidade, pelo estudo das Belas Letras, do bem, do belo, do verdadeiro e do Divino no ser humano e na sociedade. A De hominis dignitate, Oração ou Elogio da Dignidade Humana, de Giovanni Pico della Mirandola, unindo as mais diferentes tradições filosóficas e religiosas na exaltação do ser humano como unificador do micro e do macrocosmos, é como que a declaração programática e evangélica do Renascimento.
                                    
                            Giovanni Pico della Mirandola, na biblioteca do prof. Pina Martins.
Operava-se um retorno às fontes do pensamento Ocidental mas também do Oriental, já que a ideia de uma continuada tradição religiosa, de uma Filosofia Perene, presente em todos os povos e nos seus livros, de que Hermes Trimesgisto era a figura semi-mítica arquétipa, foi aceite e demandada por alguns dos maiores humanistas, sobretudo os do sul da Europa, como Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Francesco Patrizi, Eugubino Steuco, etc.
A Villa Caregi, cedida pelos Médici, a Marsilio Ficino e onde se reunia a Academia Platónica.
    A Academia Platónica florentina, e restam-nos algumas descrições por Marsilio Ficino e outros, foi nesse aspecto exemplar e fecundante pois dela participaram em diálogos e celebrações cordiais e luminosas, homens de filosofia, ciência, arquitectura, poesia, pintura, política, que irradiaram depois teórica e praticamente para a civilização Europeia e Cristã, enquanto que Portugal começava a sua metódica colaboração ou contribuição ao nível das ciências da navegação que iria congraçar tão distantes povos e lugares, unindo mais directamente o Ocidente e o Oriente, embora nem sempre irenaicamente, isto é, pacificamente.
Isto aliás foi então tema de controvérsias ou dúvidas, pois se já  os grandes humanistas europeus eram claramente pela resolução do conflitos pela razão e o diálogo e não pela força bruta, e o próprio Erasmo criticava a política de monopólio das especiarias que D. João III lançava,  já os humanistas portugueses se viam confrontados com a ideia de guerra santa, ou que fosse defensiva, contra os inimigos da fé e da expansão em que Portugal estava envolvido.
Erasmo de Roterdão, a voz da consciência da Europa humanista e irenaica
Se hoje em dia por um lado a globalização do conhecimento e dos contactos entre os povos é vertiginosamente maior, com constantes descobertas e relacionamentos na mesma comum religiosidade e filosofia humana, já os ideais éticos e de conhecimento puro e fraterno, irinaico mesmo, ou seja pacífico, do Humanismo do Renascimento tornaram-se menos estruturantes e decisivos numa civilização moderna demasiada dependente dum sistema económico financeiro ao serviço pragmatizado de uns poucos, politizada inferiormente e violentamente, regida por algumas elites dominantes extremamente conservadoras das suas posições e altamente repressivas e manipuladoras dos outros em especial dos que os desmascaram ou contestam, apoiadas nas descobertas e aplicações de ciência e da tecnologia e com muito poucas considerações éticas, estéticas, religiosas e espirituais, antes tudo violentando numa hybris ou arrogância desmesurada, que tem o seu acume no imperialismo norte-americano e todas as guerras que tem suscitado. O contrário do ideal renascentista e já afirmado nos pitagóricos, do "nada em excesso", ou do adágio erasmiano de que "a guerra só é agradável a quem não a experimentou".
As cartas de homens obscuros, lançadas por Van Hutten e outros, ironicamente e com grande suceso, contra a repressão do pensamento e livre expressão
Sendo as fontes do conhecimento na época do Renascimento ao princípio os escassos manuscritos e depois a crescente impressão e acessibilidade do livro, tais demandas e realizações de conhecimentos e valores tiveram nos seres bilingues e trilingues ou mais, os que deram melhores frutos comparativos, na época sobretudo na leitura dos textos antigos de latim e do grego, ou ainda do árabe, hebraico, caldaico e persa, para se estudarem e publicarem melhor textos religiosos e filosóficos (basicamente, por um lado a Bíblia e os primeiros padres da Igreja, por outro os ditos autores pagãos, seja de literatura na sua elegância, seja na filosofia e espiritualidade), funcionando o latim e o grego como as línguas francas do conhecimento, da investigação, da retórica, embora lentamente nos séculos XVII e XVIII começassem a ser abandonados pelas línguas nacionais, que foram assim fortificando-se para poderem abandonar as matrizes antigas e começarem a gerar comunicações novas com as ressonâncias anímicas mais susceptíveis de serem compreendidas por todas.
 Hoje em dia, embora haja muitos investigadores dominando tais línguas e outras e partilhando os seus conhecimentos em publicações internacionais e em redes alargadas da web, a grande maioria da população sofre uma certa manipulação e massificação proveniente das fontes já distorcidas e obscurecedoras de informação anglo-saxónicas e uma consequente perda das possibilidades de aprofundamento fraterno das múltiplas notícias, sabedorias, criatividades e propostas de outros países e idiomas culturais que não sejam os nacionais, frequentemente de fraca qualidade, ou alguns poucos de outro países que se destacaram por grandes sucessos e saem da zona obscura e marginalizada do mundo não submetido ao império norte-americano.
A essência humanista, a dignidade do homem, a sua universalidade, a sua autodeterminação, ainda que nos nossos dias continuem teorizadas e até por muitos filósofos e grupos cultuadas, encontra contudo por parte das classes dominantes mundiais muita recusa, menosprezo ou mesmo repressão e opressão.
Marsilio Ficino, Giovanni Pico della Mirandola e Angelo Polizano num fresco florentino.
O ideal da República das Letras, pacífica, culta e prospera, sonhado por Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Erasmo, Lefevre d'Étaples, Froben e outros, utopizado por Thomas More, Francis Bacon, Campanela, Valentim Andrea e outros, com alguns reis ou príncipes receptivos, se volta e meia se reanima em alguma assembleia política, em algum congresso mundial, em algum colóquio mais internacional, em algum livro como a Utopia III de Pina Martins, logo se esfuma perante a titânica luta dos Estados pelos bens dos outros, destacando-se nisto o imperialismo norte-americano e dos seus aliados contra os que não se sujeitam a ele. 
    Jacques Lefèvre d'Étaples, impulsionador do livre exame das Escrituras, animador do cenáculo de Meaux, tradutor dos Evangelhos e de textos patrísticos, comentando-os...
Uma parte substancial dos recursos ou dinheiros aplicados à demanda e partilha de conhecimento humano acaba por servir para uma competição imensa e frequentemente violenta entre os Estados e os povos, as melhores inteligências sendo compradas internacionalmente para em Universidades ou centros de investigação servirem para perpetuar domínios injustos e para serem utilizadas para descobrir como fazer o mal, ou fortificar as capacidades letais de domínio internacional ou opressão policial e militar.
                                                 
 A ciência que se desenvolveu no Renascimento tardio ou no segundo Renascimento, e fez tantas descobertas importantes, desde as dos portugueses às de Leonardo da Vinci, acabaria por vir a tornar-se uma ciência progressivamente despida do enquadramento humanista, perdendo-se o ser humano como o centro de todos os valores e fins, embora sem dúvida uma maior consciência da dignidade de todos os seres vivos, nomeadamente dos direitos dos animais tenha crescido bastante.
S. Thomas More, num santinho oferecido pelo abade Germain Marc'hadour, grande moreano amigo de Pina Martins.
Assim as utopias iniciadas por Thomas More, e logo seguidas por Campanela, Bacon e outros, com alguns líderes mundiais a tentarem realizar algo desse bem para muitos, e nem referiremos os sonhos do reino do Espírito Santo ou as mitificações do V Império português, acabaram por soçobrar quanto à aplicabilidade no decorrer dos tempos, chegando ao séc. XXI quase esmagadas pela elefantíase da civilização norte-americana e do sistema oligárquico mundial, enquanto na Europa o sonho duma União Europeia humanista se tornou uma desilusão total, sobretudo na cena internacional, vendida a grandes interesses de países ou corporações, e pouco se esforçando por fomentar e proporcionar harmonia, ecologia, justiça, felicidade, evolução e aperfeiçoamento...
O Irenismo ou Pacifismo dos Humanistas deve então ser realçado fortemente, nomeadamente nos nossos dias de ameaças de novas grande guerras, lembrando tanto a Utopia de Thomas More e o adágio Dulce bellum inexpertis,
por Erasmo desenvolvido magistralmente e vivido exemplarmente, propondo sempre o diálogo e as negociações para os conflitos seja religiosos seja políticos, como também todos os outros, tais como o nosso Damião de Goes, que quiseram e lutaram por sociedades mais educadas e livres, vivendo em respeito, paz e diálogo, deixando assim ideias, métodos, sacrifícios e exemplos futurantes, bem necessários hoje (VIII-2022) quando vemos milhares de livros da Santa Rússia a serem queimados...

                               Assinatura de Damião de Goes, um santo mártir nosso...
José V. de Pina Martins, de quem comemoramos o centenário do nascimento neste ano de 2020, foi um grande investigador, expositor e representante do Humanismo e do irenismo nos nossos dias, conseguindo até face a alguns ataques e bloqueios  sofridos em instituições a que presidiu, como me narrou, manter a sua dignidade e calma, preferindo o caminho irenista do diálogo ou mesmo da aceitação sacrificial. 
Pina Martins, com as vestes de doutorado na Sorbonne parisiense, junto a Giovanni Pico della Mirandola.
    No ano de 1986, no Colóquio Sobre Portugal e a Paz, efectuado em Lisboa na Academia das Ciências, a que tantas vezes presidiu inexcedivelmente,  José V. de Pina Martins proferiu uma notável conferência, intitulada o Conceito de Paz nos Humanistas Portugueses, na qual, mostrando como Petrarca, Lorenzo Valla, Marsilio Ficino e Pico della Mirandola foram plenamente irenistas, verberando a violência que rebaixava os seres humanos a sub-animais, já que os animais não tinham nem as vaidades nem os ódios humanos, fora com Erasmo que tal irenismo atingira o seu ponto máximo e a sua formulação mais precisa, baseada nos ensinamentos de Jesus Cristo nos Evangelhos, na patrística (particularmente  S. Agostinho), em fontes pagãs ou clássicas, e nos humanistas seus predecessores, e ainda no bom senso, escrevendo as suas cartas e adágios que se tornaram grande sucessos em toda a Cristandade, nomeadamente pedindo aos que queriam converter os turcos que se convertessem primeiro, e que dele  fortificara-se tal pacifismo em admiradores, discípulos ou confabuladores, como o catalão Luis Vives ou o nosso Damião de Goes,  exercendo-se ainda, embora mais condicionada pela missão expansiva conflituosa portuguesa,  em João de Barros, André de Resende e um pouco em Jerónimo Osório.
Ao finalizar, "em conclusão", em seis parágrafos tal valiosa conferência, começa assim:«O Humanismo renascentista, pelo que diz respeito ao seu programa ético e político, é pacífico e irénico. Os grandes humanistas de Petrarca a Erasmo, de Marsilio Ficino a Vives, de Giovanni Pico della Mirandola a Guillaume Budé, preconizam a paz como um imperativo fundamental para que, na sociedade, os homens possam encontrar, tanto quanto possível, a felicidade na sua dimensão de bem estar individual e comunitário, condições aptas à obtenção de bens materiais e espirituais. O estabelecimento de leis justas que regulem as relações entre os membros da mesma comunidade, a harmonia entre as diferentes comunidades ou Estados, tudo isso é indispensável para que a paz possa florescer e frutificar, cornucópia da abundância para todos homens, para me expressar com uma imagem erasmiana. Os humanistas portugueses estão, a esse respeito, de acordo com os humanistas europeus.
Não obstante, os humanistas portugueses compreenderam a situação histórica de Portugal na sua especificidade sobretudo em relação à expansão islâmica e não hesitaram por isso mesmo, cada um à sua maneira, exaltar empresas que, se interpretadas á luz de uma concepção moderna - o que o historiador digno deste nome não pode nem deve fazer -, não deixarão de parecer belicosas, mas que, à sua forma mentis [mentalidade], plasmada por um Humanismo europeu que não havia obliterado a sua fidelidade a uma vocação nacional, surgia numa perspectiva historicamente explicável. E isto mau-grado o seu irenismo e o seu ecumenismo, aberto não raro ao diálogo, até com as mais discutidas  figuras da Reforma, tal o exemplo de Damião de Góis.».
Damião de Goes, sem dúvida o português mais erasmista e em especial irenista, pelo seus diálogos com os humanistas católicos e protestantes já em plena Reforma mas abertos  à paz, pela sua defesa dos Lapões serem ensinados e não forçados a converterem-se, e pela valorização do cristianismo etíope dos Prestes João e de uma religião de coração e não de ritos, preceitos, intermediários e superstições. 
                        O sábio Damião de Goes, grande amigo e discípulo de Erasmo.
  Tal como Desiderio Erasmo  dissera a propósito de ser lícita a guerra ou conversão dos Turcos, na versão de Pina Martins exarada na sua importante obra Sobre o Conceito do Humanismo (p. 246) e citada nesta conferência no Colóquio sobre Portugal e a Paz: «Erasmo observa que só com as armas cristãs os cristãos poderão submeter os Turcos, e essas armas são uma vida pura, o desejo de bem fazer aos inimigos, a paciência perante as ofensas, o desprezo do dinheiro e da glória». 
Possamos nós estar mais em paz e transparência à nossa consciência e essência espiritual, abertos lúcida e amorosamente aos outros, aos mestres e anjos e ao Ser Divino, e assim Portugal ser mais um pais irenista, ecológico, de diálogo ecuménico e fraterno, e não seguidor ou acólito de imperialistas mas sim universalista. 
            A marca ou empresa, bem ascensional e espiritual, do sábio e prolífero impressor humanista Ioannes Froben, grande amigo de Erasmo.