sábado, 20 de fevereiro de 2016

Antero de Quental e o soneto "O Inconsciente", comentado. Com ilustração de Maria Keil.

José Régio (1901-1969), notável poeta e escritor, da geração da revista Presença, seleccionou para a editora Artis, em 1966, trinta e um sonetos de Antero de Quental, pedindo ainda a quatro amigos artistas que ilustrassem um à escolha, considerando-os como os mais belos, tal como outras almas já tinham realizado, embora indigitando outros  sonetos. Não está ainda contabilizado, seja nos registos de selecções e antologias, seja na expressão escrita e testemunhal dos preferidos e menos ainda no interior dos seres que os leram, gostaram e acolheram, quais eram mesmo os melhores sonetos.
Talvez nestes nossos dias se deva fazer um novo inquérito e valorização, mas para já aceitemos a escolha de José Régio e, seleccionando um, dos ilustrados, por Maria Keil, O Inconsciente, comentemo-lo ao de leve e na intenção de maior Luz Divina em Antero de Quental e em nós...
Um poema de certo modo trágico, pois Antero de Quental identifica a sombra ou fantasma, guardião do umbral ou inconsciente que vê dentro de si, e que deve ser interrogado e vencido, como sendo Deus, quando ele é apenas a sombra da Divindade, provinda do Deus do Antigo Testamento e que fica como um fantasma opressivo em quem não  invoca,  medita,  conhece e ama a verdadeira Divindade ou Deus.
Dessa falta de trabalho de ligação superior com a Divindade e portanto do seu estado gnóstico mais limitado, obscurecido e ignorante resulta a sua projecção ou criação poética de um Deus fantasma que nem sabe quem é ou como se chama...
Certamente que há que contextualizar esta criatividade de Antero seja como simples poesia seja como uma reacção natural ao Deus do Antigo Testamento que embora se chamando "Eu sou aquele que é", IHVH, era tão violento e opressivo que de certo modo Antero o vê ou torna um espectro semi-ignorante projectado pelos seres humanos.
Será que ele quis reduzir esse Deus a um mero fantasma ou espectro familiar, ou para ele esse Deus da religião católica em que fora educado era apenas um fantasma, desconhecendo-se a si próprio, quase que como Jeová tivesse sido criado apenas pela imaginação humana mitificante ou, como ele e "Deus" caracterizam, vã?
De realçar, algo menos coerentemente com a sua constante valorização da voz da Consciência, Antero começar aparentemente de modo socrático, pois de certo modo apresenta o espectro na linha do daimon ou génio interior de Sócrates, que anda consigo e que ele tanto receia como ama, e acabar no fim por o desvendar como um fantasma, um ser ilusório e não auto-conhecedor de si mesmo...
Estará Antero a reflectir algumas posições filosóficas então em moda e que caracterizavam o Absoluto ou o Divino como Inconsciente, ou está antes a reconhecer que uma certa forma de consciência moral, ou voz da Consciência, derivada da religião católica e do Deus Jehova e seus mandamentos, pode ser ilusória e incorrecta, por exemplo aguçando remorsos e problemas de consciência em casos insignificantes?
É bem natural, e poderá tal  comentário ter sido feito por  algum anteriano, mas talvez o mais importante a termos em conta desta incursão de Antero de Quental no Divino e até, de alguns modos mas não nos melhores, no daimon, ou nosso génio-anjo, é a necessidade de tentarmos despertar e assimilar mais a nossa auto-consciência de sermos um espírito ou centelha de origem divina, e não só para uma  identidade e vivência terrena mais luminosa mas para que após a morte não sejamos apenas fantasmas ou seres semi-adormecidos no tal umbral que faz fronteira com os mundos mais subtis.
Quanto à Divindade, esqueçamos, ou aprofundamos, os ensinamentos exteriores de tantas Escrituras,  meditando-a e invocando-a mais dentro de nós, e pela união do coração e da cabeça, e numa vida esperançosa e generosa, de trabalho e meditação, amor e sabedoria...
Em 30 de Maio de 2023 escrevi no blogue  outro texto sobre o soneto Inconsciente, só vindo a reler este no fim de o ter escrito, para assim se erguerem, e logo complementarem, mais integralmente.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Antero de Quental. "Hino à Razão". Soneto de 1873.

Os Sonetos completos de Antero de Quental, prefaciados por Oliveira Martins, após a 1ª tiragem portuense em 1886, e a 2ª  em 1890,  saíram numa 3ª edição no ano de 1918, de novo no Porto, na Companhia Portuguesa Editora. Ora tendo há pouco adquirido um exemplar na livraria alfarrabista do Bernardo Trindade, à rua do Alecrim [agora já no Lg. Academia Nacional das Belas Artes], partilho-o pois não é vulgar encontrá-lo numa encadernação em "pano de chita", que não vem dos místicos e corajosos Shia ou Shitas da Pérsia e do Iraque (e noutros países) mas do sânscrito chitra, tecido de algodão (também denominado chin), e que em Portugal foi bastante estampado, com as suas flores e outros belos motivos, m oficinas artesanais bem criativas da zona de Alcobaça.
    
Alcobaça, a terra natal do pai do Bernardo Trindade, Tarcísio, poeta e sábio bibliófilo durante décadas na sua mirífica livraria no nº 44 da r. do Alecrim, mas também munícipe ilustre e filantropo (dos bombeiros) de Alcobaça e que, embora já nos mundo subtis, tem no seu filho Bernardo um digno continuador, tal como nos irmãos e primos também dedicados às artes, antiguidades e livros, embora agora ameaçados pela invasão turística e a venda retalho de Portugal, e em especial das lojas na Lisboa central, numa descaracterização fatal e mais de terceiro mundo de que dum país com tão rica história.
Este exemplar tem ainda a particularidade de apresentar assinaturas, carimbos e ex-libris de posse dos usufrutuários que se abeiraram do Logos, o mundo das Ideias, servido por Antero neste belo cálice, que ostenta agora também, embora a lápis, a pertença, ou se quisermos a ligação, desta hora: Antero de Quental, escritor, nome da página criada por mim no Facebook dedicada a ele.
Ora o ex-libris, criado pelo, e para o, último dono Carlos J. Vieira, é bastante simbólico, e nele mencionarei apenas o oceano, a montanha que se ergue para o Sol e, no mais alto, a vieira ou concha das bênçãos divinas para os peregrinos da Verdade, certamente bem apropriada para um livro de Antero de Quental, ser sempre em demanda.
Aníbal Antunes Graça terá sido o seu segundo possuidor, o que originou a encadernação que ostenta ainda o seu carimbo, tendo o senão de ter riscado no frontispício o nome do anterior possuidor, que fica assim privado da relativa "imortalização" neste texto...                                             
                                            
Apresentamos, depois destes pormenores bibliófilos, um soneto, dos mais belos e luminosos, um daqueles em que Antero de Quental aspira e canta mais ao alto, à Razão, irmã do Amor e da Justiça e, confiante, se entrega a ela, o Hino à Razão.
                                
Disposto nos Sonetos como sendo o último da série redigida entre 1864 a 1874, a fase de razão mais crítica, dinâmica e revolucionária de Antero, presumindo-se  escrito em 1873, já que no princípio de 1874 o enviou para um Bouquet de Sonetos publicado pela Sociedade Filantrópica Académica do Porto, deveremos destacar e invocar em nós o que o jovem de trinta anos canta, conjura ou apura em si: uma alma livre e a nada submissa senão à Razão, certamente um ideal pelo qual todos devemos lutar, pois ora pelos instintos, emoções, preferências e pensamentos incorrectos, ora pelas manipulações exteriores, medos e atracções, afastamo-nos do que seria o Verdadeiro e o Justo, a Ordem Inteligente, o Logos, e utilizamos esta palavra sem a reduzirmos a racional e a lógico, pois o verdadeiro conceito de Razão ou Logos, hoje no séc. XXI  bastante  diminuído na capacidade de abranger os fenómenos da Vida na sua subtileza, infinidade e unidade, ou ainda os fenómenos e capacidades da psique humana, é bem mais vasto e profundo.
Com efeito, o Logos dos gregos, desde Heráclito, que inicialmente significava discurso, palavra, Ordem e Inteligência-razão,  com os filósofos neoplatónicos e o cristianismo do Evangelho segundo S. João, I.1. (En arche en o logos, kai o logos em pros tos Theon, Kai o logos en Theos, "Ao princípio era o Logos [Verbo, Sermo ou Palavra], e o Logos estava com Deus e o Logos era Deus)",  seria erguido quase a sinónimo da Divindade, ou pelo menos ao seu Filho.
Portanto, mais do que dever ser reduzido apenas àquilo que é pensado ou raciocinado cerebralmente, deve ser visto, sentido e trabalhado  como a visão da dimensão ordenada e inteligente do Universo, a qual permite compreender e unificar a multiplicidade dos contrários em luta, tais como sentimento-pensamento, egoísmo-altruísmo,  bem-mal, sendo portanto tanto racional como supra-racional ou supra-mental, e desenvolvendo-se em nós pela aspiração, a coragem, a sensibilidade artística, o estudo, a reflexão, a meditação e a intuição. 
Tal é  o que Antero de Quental desde muito cedo valorizou e foi entendendo por Razão, com auxílio dos pensadores e filósofos que o antecediam, sobretudo da França e da Alemanha, de Kant e Hegel a Michelet, Quinet e Proudh'on, a que juntou depois, numa linha mais de inconsciente e panteísta, Hartmann e Schopenhauer, e que nós hoje poderemos tentar compreender melhor ainda com o conhecimento mais completo tanto das cosmovisões e filosofias orientais como dos autores clássicos greco-romanos e sucessivos  iniciados, gnósticos e herméticos, que realizaram de um modo ou outro tal dimensão mais profunda,  universal e espiritual da Razão ou Logos.
Para tal tarefa de assunção (ou assimilação) maior do Logos em nós, e portanto de uma vivência mais racional, justa, profunda e harmoniosa na vida, Antero de Quental ergue ou discerne duas colunas suas irmãs, o Amor e a Justiça, constituindo uma Trindade, como três faces do Absoluto, da Ideia, ou, como poderemos nós dizer, da manifestação Divina.
Isto já estava em construção nos sonetos anteriores deste ciclo, num dos quais a concepção normal de Deus é considerada ultrapassada, Palavras dum certo Morto, e noutro, Justitia Mater, a Justiça é erguida a Mãe, tal como faz com a Razão, reconhecendo em tais arquétipos ou ideias,  qualidades que nos nutrem, nos fazem crescer e realizar-nos:
«Há mais alta missão, mais alta glória:
O combater, à grande luz da história,
Os combates eternos da Justiça.»

Esta Razão é então uma com o Amor e a Justiça, é Divina, e é para ela que Antero ergue a voz do coração, ou seja, o seu apelo e prece, mostrando-nos assim que a oração ou aspiração deve brotar do íntimo do peito, do coração, da nossa alma ou psique individual rumo ao universal, ao impessoal, ao espiritual, algo que Antero de Quental desenvolveu e transmitiu bastante na sua correspondência, valorizando tal posição e revolução moral (vencer-se o egoísmo) como a mais importante de todas.
O que tinge e  caracteriza o nosso coração, o que deseja ele, apetece, aspira, ama, sonha, reza, quer? Há uma harmonia ou uma luta grande entre o coração-fé-sentimentos-aspirações  e a razão crítica e prática?
 Em Antero de Quental houve desde cedo, desde a chegada e a imersão na demanda juvenil universitária conimbricense,   tal conflito e foi bastante consciencializado e referido ao longo da vida, nomeadamente, embora mais tarde, numa carta a Oliveira Martins, provavelmente de 1880, acerca da poesia própria do seu génio natural:«É incrível a desarmonia que há entre a minha razão e o meu sentimento, e este, por mais que faça, nunca chega a afinar pelo tom grave e claro daquela. Que fazer? É evidente que a poesia sai do sentimento e não da razão. Aceitemo-nos tais como nos fez a natureza. Não se pode exigir do pinheiro que dê laranjas. Os poetas são como as mulheres: hão-de se tomar tais e quais, com os defeitos e as qualidades que na sua fatal natureza são inseparáveis»...
Ora Antero de Quental escolhe neste hino a palavra-ideia Razão como o seu maior destino do coração,  por opção determinada e consciente, abandonando o Deus judaico-cristão e preferindo a Razão universal, ou primordial, ou absoluta, o Logos. Todavia, num soneto da época, intitulado exactamente de Logos, enviado numa carta de Setembro de 1875 a Jaime Batalha Reis e publicado nos Sonetos como redigido entre 1880 e 1884, a Razão ou Logos é sentida duplamente como ser e como qualidade: como «um nimbo de afecto e de ideias que são meu princípio, meio e fim», e também como um pai, um irmão, um tirano (por exemplo, quando o criticasse por estar a agir mal...), mas a quem ama, numa linha de diálogo interior  como uma Razão ou Voz dinâmica da Consciência, de origem supra-individual, ou pelo menos acima da sua personalidade normal. E esta  bem precisando do seu impulso, nomeadamente quando estivesse mais por baixo, mais desanimada ou apenas indecisa. Daí as cartas a Fernando Leal (já trabalhadas neste blogue) em que Antero aconselha o seu amigo a ouvir a sua voz da consciência, íntima, para ganhar forças e avançar...
Também nos auxiliará a compreendermos o alto conceito que Antero de Quental fazia na sua alma da Razão, lermos a carta escrita a Bulhão Pato, a 25 de Julho desse ano de 1873, onde o apoia e intensifica a crítica aos pseudo-filósofos, republicanos e revolucionários mais descabeçados ou extremistas que no fundo perturbavam a expansão das ideias  socialistas e revolucionárias: «Em verdade te digo: ninguém hoje faz tanto mal à Ideia Nova como esses, que se nos impõem como apóstolos dela, charlatães uns, fanáticos de cérebro estreito e coração encorreado! Estão para a Ideia Nova, como estavam para o Cristianismo aqueles mentecaptos exaltados da Tebaida [que significa tanto zona do Egipto, como retiro, eremitério]], extravagantes, lúgubres, que só sabiam, além dos nomes dum misticismo idiota, destruir estupidamente as mais belas coisas da arte egípcia e grega, amaldiçoar o que não compreendiam, e atirar-se como bestas feras àquela sublime Hipácia, suplício que seria a desonra do Cristianismo, se a estupidez humana pudesse desonrar o que tem em si um raio da Razão eterna!... A Razão eterna, que está no fundo da ciência e da filosofia moderna não será também desonrada por estes Pacómios e Hilariões [dois conhecidos eremitas da época], que pretendem fazer dela uma coisa selvática e abstrusa, uma Tebaida intelectual (...) O que te digo é que a revolução na sua marcha triunfante e silenciosa, não precisa destes tenebrosos aliados».
Neste Hino à Razão Antero de Quental intui ou poetisa como feminina a Razão eterna e universal que tudo penetra, o Logos Divino omnipresente já referido, Razão que é mãe e protectora dos que robustamente meditam, lutam e aspiram a ela. É invulgar tal polarização feminina, mas Antero sentiu-a, e sempre teve grande amor à sua mãe, de tal modo que quando ela morreu sofreu e manifestou-o em cartas para além de que o seu amor em jovem pela Mulher foi muito elevado e intenso, mas o Destino não o quis como pater familias mas poeta revolucionário e filósofo do Absoluto. Talvez por isso tenha conseguido dar uma face feminina à Razão, e até estando de acordo com o género que a rege em português. Aliás já o mesmo se passara com a Justiça, e, por fim, também com a Morte, para ele uma mulher e por quem quase se apaixona. 
A imagem seguinte que apresentamos de Antero, no meio de um belo bordado de uma mulher ou mãe portuguesa anónima, é uma homenagem tanto a Mulher como à Mãe, como ao Logos ou Razão, esta podendo dizer-se, numa metáfora, como sendo tanto a tecedeira inteligente como a tela substracto e a ordem em que os desenhos das nossas vidas são entretecidos pelo esforço heróico e a razão crítica, lúcida e corajosa que temos de ir desentranhando de nós próprios na luta pela verdade, justiça, amor e liberdade, tão bem assinaladas no soneto.
 Oiçamos então Antero neste seu poema filosófico  tingido de devoção, fortificando-nos na nossa consagração ao Logos, à Inteligência omnipenetrante e substante do universo,  à Verdade e, portanto, na prática, à palavra e pensamento, sentimento e acto justos e harmoniosos, os quais, segundo Antero de Quental, a filosofia de Kant e Hegel e a Tradição Perene, originam ou permitem que a virtude prevaleça sobre o egoísmo e o heroísmo floresça, de modo a que tanto a Ideia verdadeira, a Presença espiritual e divina e a Fraternidade (a vivência de tais Ideias na prática) venham mais ao de cima, passem do virtual ao real, sob a égide do Logos ou Razão, o qual foi também realizado e descrito como o Amor Inteligente que permeia ou fecunda o Universo, nomeadamente pelos estóicos, com quem Antero sempre se identificou um pouco.
 Por exemplo, numa valiosa carta do final de 1865 ao seu grande amigo Germano Meireles, pai das duas crianças que Antero pela sua morte  adoptará, refere acerca de si mesmo e da sua doença, três níveis da Razão (a absoluta ou universal, a especulativa ou filosófica e a prática ou própria de cada um) e o estoicismo:«Isto às vezes chega a um estado agudo, que de tudo me faz esquecer quanto não seja aquele lutar comigo mesmo, com a rebeldia do organismo que se quer emancipar da razão. É como tenho passado estes últimos 15 dias, e aí tens porque te deixei tanto tempo sem notícias minhas. Vão agora estas, que não são boas, mas podiam ser piores, se a estes males eu não juntasse uma fé crescente em cada dia no poder da vontade e da razão. Tenho fé em que hei-de por elas dominar todos os fenómenos da doença, produzindo não uma cura no sentido médico, mas uma eliminação do mal para a consciência. Sou estóico em teoria e espero chegar a sê-lo na prática. Mas vejo diante de mim ainda muito caminho que andar e caminho aspérrimo. Embora!, o único, grande e verdadeiro triunfo é o triunfo da liberdade. Quando penso nisto chego até a abençoar a doença que me dá ocasião para exercer a virtude por excelência dos fortes, e se não me abandono a um tal sentimento é só por me parecer orgulho demasiado, quando é certo que a frequência das misérias morais me adverte da nativa fraqueza. Mas pôr os olhos num grande alvo não é já, num certo sentido, merecê-los? Não lastimes pois o teu amigo, que está talvez nesta hora entrando no período mais nobre da sua vida moral. Será isto também ilusão, como tantas teorias, tantos sistemas pretensiosos? Não posso crê-lo. A razão especulativa é um terreno movediço e são precários os sistemas que nele assentam. Mas a razão prática (como diz Kant), a consciência imediata que temos do nosso ser moral, da natureza livre e racional que em nós existe, é uma verdade de intuição, um facto de consciência, é a expressão da nossa mesma realidade. Conformarmo-nos com ela é pois estar (se não na verdade do Universo) com certeza na verdade da nossa natureza.»
Sondemos então de novo o Hino à Razão
                                      
                                    HINO À RAZÃO
       
      "Razão, irmã do Amor e da Justiça, 
      Mais uma vez escuta a minha prece, 
      É a voz dum coração que te apetece,
      Duma alma livre, só a ti submissa.
Por ti é que a poeira movediça
De astros e sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.
       Por ti, na arena trágica, as nações  
       Buscam a liberdade, entre clarões;  
       E os que olham o futuro e cismam, mudos,
Por ti, podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos, que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!"
Realcemos finalmente no soneto, até pela sua actualidade, o duplo aspecto da luta pela Razão-Justiça-Verdade: as nações, que em clarões lutam pela sua liberdade (e pensaremos em especial no Médio Oriente, tão dilacerados pelo imperialismo norte-americano e dos seus coligados, ou na América do Sul) e as pessoas, que cogitam um futuro melhor e lutam robustas protegidas pelo escudo de terem razão, ambas sabendo e tentando não se deixarem oprimir demasiado ou abater... 
                             
Terminemos com um plano do pano de chita ou chitra, que também podia ser do Japão, com sua tão amada flor de cerejeira, sakura, e com a qual podemos imaginar a comunhão com Antero de Quental, a Razão e a  Divindade, sentidas estas tanto no nosso coração, voz e prece como também no abrir-nos, sintonizarmos e regermo-nos cada vez mais pela Razão, a Ordem, a Beleza, o Bem da Humanidade e  do Cosmos. 
E nisto movidos pela aspiração à Justiça e à evolução da Humanidade  e não por instintos ou medos, frustrações ou desejos. E assim, lúcidos, nos robustecemos para florescer e frutificar as nossas vidas em Amor, Justiça, Logos, Verdade, Fraternidade e Liberdade, bens tão menosprezados e ameaçados nos nossos dias quanto essenciais e sagrados na perenidade da dignidade humana e da sua religação ao Logos Divino, o que Antero de Quental tanto cultivou e demandou...

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Leonor Beltrán expõe pela 1ª vez, na sala das Conferências do Casino, ao Chiado lisboeta.

Leonor Beltrán, pedagoga e coreógrafa, inaugurou no dia 13 de Fevereiro (de 2016) a sua 1ª exposição artística, com 12 desenhos a tinta da china, de grande trabalho e qualidade.
Poderá vê-los ou interagir com eles durante mais três semanas na galeria da Livraria Sá Costa, à Rua Garrett, e estão numa sala muito histórica de Lisboa, pois neste edifício e talvez andar se realizaram em 1871 duas das famosas conferências do Casino Lisbonense, a de Eça de Queirós, A Literatura Nova. - O Realismo como nova expressão de arte e a famosíssima e tão reimpressa e estudada de Antero de Quental, Causas da Decadência dos Povos Peninsulares.
Neste manifesto contra as forças mais conservadoras ou opressivas, sempre actual, Antero clama para que se desenvolva «a ardente afirmação da alma nova, a consciência livre, a contemplação directa do divino pelo humano, (isto é, a fusão do divino e do humano), a filosofia, a ciência, e a crença no progresso, na renovação incessante da Humanidade pelos recursos inesgotáveis do seu pensamento sempre inspirado».
Estiveram presentes algumas pessoas que de algum modo ou outro são lídimas continuadoras de tal luta pela Verdade, Liberdade, Beleza, Amor e Justiça e os diálogos aconteceram, à boa maneira de Agostinho da Silva («A palavra conversa tem a mesma origem etimológica que converter, o que está implicado quando um homem conversa com outro, é uma conversão de qualquer deles ou dos dois ao mesmo tempo – é converter-se aqui, converter-se a qualquer coisa que entenda os dois como as duas partes, as metades de uma certa unidade. Quando conversamos com uma pessoa, no fim de contas queremos converter-nos ou converter a nossa dualidade numa unidade superior»), Agostinho da Silva que neste dia fazia 110 anos.
Seguem-se algumas fotografias, e faltam as de muitas pessoas, tais como as do João Rebolo,  Carmo Póvoa, Vasco Croft, Susana Borges, sendo já do final da exposição...
A Leonor, pedagoga e bailarina, coreógrafa e professora e, desde agora, pintora..
A Paula Oliveira, soprano e de jazz, mais uma sua amiga, e com quem tivemos um bom diálogo sobre a Palavra, Verbo ou Lira de Orpheu...
Juventude que aspira à beleza, ao bem e ao conhecimento...
O vento do Espírito Santo soprando na artista...
Últimos momentos: A Leonor, Mário Azevedo, Joana Consiglieri, Ana Calém, a Filomena Ricciardi, o Zé Sousa Machado. Faltou o Vasco Croft, vindo de Ponte Lima..
Loco tempore... Novas exposições esperam-se...

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Agostinho da Silva e a biografia de Tolstoi, nos 110 anos de nascimento de Agostinho, um divulgador de Tolstoi.

    Em 1941, Agostinho da Silva, na sua meritória tarefa de pedagogo, ou de educador popular com qualidade, dava à luz na sua vasta colecção, iniciada em 1940, Antologia, Introdução aos Grandes Autores, um número (como habitualmente de 24 páginas) dedicado a Tolstoi, com uma pequena biografia e um belo conto, certamente traduzido do francês, A Terra de que precisa um Homem.
Hoje, 13 de Fevereiro de 2016, quando Agostinho da Silva "faz" 110 anos, eis uma pequena homenagem as dois espirituais e pensadores, sábios no bom sentido da palavra e activistas éticos exemplares para os nossos dias de tanta subtil manipulação e violenta opressão...
Realcemos apenas na curta biografia que Agostinho traça de Tolstoi os valores que atribui aos seus pais de "vida pura, amor ao próximo e actividade social justa ou frutuosa", tão característicos da alma russa, bem como a forte aspiração ao Amor universal que Tolstoi teria recebido (ou melhor, intensificado...) de Jean-Jacques Rousseau, e que Eduardo Lourenço discerniu também no optimismo naturalista de Agostinho; e como Tolstoi se debateu numa luta grande contra os seus aspectos instintivos, egoístas e violentos, a qual durará toda a vida, dada a sua grande vitalidade, e na qual soube com grande arte na obra literária e religiosa genial mostrar que, apesar dos piores defeitos, os seres tinham sempre um potencial de transformação, de desenvolvimento, de amor, gerador de beleza, justiça e harmonia, valores tão necessários e valiosos então como agora.
Como sabemos,  Tolstoi tornou-se com o tempo cada vez mais não-violento, austero e desprendido da sociedade, irradiando para todo o mundo a sua espiritualidade simples e fraterna, atraindo a si, na sua ancestral propriedade Iasnaia Poliana, por correspondência ou visita (tal a do nosso sábio vegetariano Jaime de Magalhães Lima, que dele recebeu a missão de trabalhar com as mãos, o que se plasmará na sua modelar quinta em Vagos, Aveiro). Ora Agostinho da Silva, que também viveu bastante a simplicidade e tentou fomentar comunidades descentralizadas, rurais, destacará e lúcida mente e empática alma de Tolstoi, capaz de ver os erros e dogmatismos de si e dos outros, transmitindo com eloquência, coerência e paixão o seu ideal de sociedades mais abertas à fraternidade, ao amor, à vida natural harmoniosa e simples...
Os paralelos entre Lev Tolstoi e Agostinho da Silva estão ainda parte por fazer-se e nestes tempos conturbados, que apelam tanto à comunhão com as grandes almas individuais e nacionais, saibamos trabalhá-los e erguer o santo "Graal, Graal, Rússia, Índia e Portugal"...
Agostinho da Silva com um gorro russo, tão actual face à russofobia da classe política tonta...
Leiamos então a visão que Agostinho da Silva tinha de Tolstoi, ou a que expôs nesse prefácio em 1941, jovem de 35 anos, realçando-se ou transcrevendo-se apenas esta parte:«atacou os sacerdotes que traíam Cristo e os revolucionários que não tinham a menor vibração de generosidade e de amor; apontou como inimigos da felicidade comum os literatos para quem a arte vale mais que o homem, e os sábios que se fecham, por comodidade e egoísmo, nos seus casulos científicos»... 
Saibamos despertar mais o Amor todo poderoso e generoso, na comunhão anímico-espiritual com Agostinho e Tolstoi, a Rússia e Portugal, e irradiando luz e paz para a Eurásia e o Mundo...
Post Scriptum: em 2021 resolvi transcrever a biografia toda e pode lê-la em no blogspot, com este título:Tolstoi e a sua obra vistos com mestria crítica por Agostinho da Silva, em 1942. Comemorações dos 193 anos do nascimento de Tolstoi, que contudo o opressivo e vendido Google não lhe apresentará, nem sequer com o link do blogue: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2021/09/tolstoi-e-sua-obra-vistos-com-mestria.html   Terá mesmo de ir ao blogue e digitar Agostinho da Silva ou Tolstoi, ou então ir ao ano de 2021, ao mês de Setembro, e ao dia 9... Provavelmente censura miserável do globalismo oligárquico googliano a Tolstoi, à Rússia...
            
  

Agostinho da Silva, nos seus 110 anos, em 13/2/2016. Invocação da comunhão com ele na Alma Mundi

                                            
Faz hoje, 13 de Fevereiro (de 2016, 110 anos, ou 118, em 2024) que nasceu na Terra, em Portugal, no Porto, mas cedo partindo para Barca de Alva, junto ao rio Douro e à fronteira espanhola, Agostinho da Silva, grande amigo e pensador, activista e pedagogo dialogante e luminoso, formado na antiga Faculdade de Letras no Porto e depois em diferentes centros do mundo. Será homenageado na Faculdade de Letras de Lisboa num Colóquio nos dias 16 e 17, no qual participarei a 17, pelas 11:00, com uma oratio sobre Agostinho da Silva e a Tradição Espiritual Portuguesa.
                                                                  
Sorrindo-lhe, relembrando-me com amor das tantas vezes que nos encontramos e dialogámos, eis três quadrazinhas muito suas para meditarmos ou decorarmos (isto é, sabermos de cor, de coração e com elas entrarmos luminosamente na outra dimensão) e, depois, um pensamento seu sempre actual e para que aconteçam mais uniões e convergências, entre pessoas e grupos, tão necessárias à grande Alma Portuguesa, a nós, ao Mundo...

Alma esculpes e não pedra
A cada gesto de amor
A ti próprio te fazendo
Como todo o criador.
+
Se não sabes o caminho
E a sorte nenhum prefere
Toma então pelo mais duro
É esse o que Deus te quer.
+
Naquela ilha dos Amores
Que sonhou Camões outrora
Só entra e fica liberto
Quem lá viva desde agora.


Como sabemos Agostinho da Silva, e luminoso esteja ele na Terra mais lúcida subtil, e inspirando os seus amigos, além de ter sido um pensador, escritor e pedagogo, foi sobretudo um dialogante, um conversador, sabendo ouvir e falar ou aconselhar, sem premeditação mas espontaneamente, numa linha, lema ou tenção de sempre de unir pessoas, aproximar culturas, reforçar laços de solidariedade para desabrochamentos luminosos e plenificantes. E alguma teorização fez dessa sua particular veia poética dialogante, na qual subitamente se podia começar a navegar no mar alto da unidade dos contrários, na criatividade pura, e à qual, todos os que mais dialogavam com ele, tocava e inspirava:
«A palavra conversa tem a mesma origem etimológica que converter, o que está implicado quando um homem conversa com outro, é uma conversão de qualquer deles ou dos dois ao mesmo tempo – é converter-se aqui, converter-se a qualquer coisa que entenda os dois como as duas partes, as metades de uma certa unidade. Quando conversamos com uma pessoa, no fim de contas queremos converter-nos ou converter a nossa dualidade numa unidade superior».
Agostinho acolhendo fraternalmente a Rússia na Europa, na qual é mestra...
 
Este ensinamento, provindo de uma mestre da conversa dialogante, que sempre procurou o entendimento entre os povos, entre o Oeste e o Leste (e como ele criticaria hoje a "parvinha" da direcção russófoba da União Europeia), o Ocidente e Oriente, deve ser realmente aprofundado por nós dentro das nossas relações e na tradição cultural e espiritual portuguesa, ou luso-brasileira, ou da lusofonia, da qual ele fazia parte, embora já muito aberto, e com particular estima por Timor e Moçambique, à unidade superior planetária e universal, que assenta na matriz ou Campo Unificado de consciência energia informação que nos subjaz, sobrevoa e recompensa, caso aspiremos a ela e a mereçamos.
Podemos dizer que se convergirmos mesmo para a Verdade e em Amor, então essa Unidade superior supra-racional e temporal, se o merecemos, abre-se-nos, manifesta-se e podemos receber intuições valiosas sobre os assuntos em questão.
Que Unidade é esta, que já a Filosofia Perene ou Prisca Teologia falava, como Anima Mundi, Alma do Mundo?
É uma unidade que tem vários níveis, desde os cósmicos, solares e planetários aos humanos, onde, por exemplo, podemos realçar a lei do Amor: o amante torna-se o ser amado e a amada o amante.
Ou o que procura intensamente a Verdade e a ama, guinda ou eleva o outro a tal vibração e então, aumentada, algo mais dela se poderá revelar, expandir, frutificar.
Ou «quando dois ou três se reunirem em meu nome, eu estarei no meio deles», disse o mestre Jesus.
Isto é, quando duas pessoas ou três se reunirem, convergindo para a a busca inteligente do que será melhor, eu (verdade, unidade) revelar-me-ei na melhor compreensão ou solução a adoptar.
Ou seja, se vos reunirdes em meu Nome, ou na minha vibração de amor e verdade, então eu estarei presente, Eu como a Sabedoria e Verdade subjacentes ao Cosmos, eu como mestre e inspirador possível dos que procuram, batem e aspiram, eu como o Espírito santo, eu como comunhão dos santos, ou dos que mesmo já partidos "bodhisatvicamente" agem pela Humanidade na Terra...
Neste Campo Unificado, numa dimensão subtilmente superior   à humana (incarnada e desencarnada), mas com ela contactando, temos os Anjos nossos, que em tais momentos mais meditativos ou unitivos também podem ser contemplados, inspirando-nos..
Esta harmonia de seres e campos energéticos e psíquicos, que se fundem e intensificam, fazem desabrochar mais a Alma Mundi ou corpo místico e amoroso da Humanidade, iluminada e intensificada com tais momentos de maior irradiação benéfica para todos, para o Cosmos...
Saibamos pois conversar convergentemente e abrindo-nos ao Espírito, de cada um de nós e do Todo, espírito da verdade e do Amor e que sendo desenvolvido por nós para com outros permite-nos continuarmos a comungar com tais pessoas quando desencarnadas, como é o caso de Agostinho da Silva, que continua certamente a visitar ou inspirar muitas pessoas, pelo menos comigo assim se passa, nem que seja neste seu dia de aniversário...
E, para terminar com o nosso Agostinho da Silva, eis uma última ideia força perene e optimista, nesta luta ainda forte contra o mundo violento e desequilibrado que alguns poderes tentam impor sob as iversas formas de controle e manipulação com o famoso título de Nova Ordem Mundial, mas que é a mesma hegemonia das oligarquias anglo-americanas mas mais modernizada.
                                        
Diz-nos então Agostinho da Silva que «aos povos e pessoas da língua Portuguesa cumpriria uma missão», entre os quais particularmente o Brasil, onde Agostinho tanto desabrochou nos cerca de 25 anos em que por lá conversou e dinamizou, algo que embora pertença a todos os povos, se pode admitir utopicamente: «guiarem o mundo ao reconhecimento da sua verdadeira essência: a do espírito na matéria esplendendo», essencial verdade e meta do caminho, mas que sabemos só se vai fazendo individualmente e em pequenos grupos, cada vez mais necessários face às ditaduras que com a covinagem e as redes sociais têm sido reforçadas. Resistamos luminosa e criativamente, em pequenas redes, grupos, comunidades... Forças!
Pintura de Bô Yin Râ

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Poema "Iniciação" de Fernando Pessoa. Uma hermenêutica psico-espiritual.

Iniciação, certamente um dos poemas mais mágicos, esotéricos e iniciáticos de Fernando Pessoa (1888-1935) e escrito nos últimos anos da sua vida, foi publicado pela primeira vez na revista coimbrã Presença, no nº 35 de Março-Maio de 1932. Contemplemos a sua reprodução:
Pela sua difícil ou exigente interioridade iniciática e espiritual ainda não conseguiu ser lido e discernido condignamente pela gens pessoana, embora Rudolf G. Lind e Fernando de Moraes Gebra, por exemplo,  fizessem afluir uma boa luz sobre ele. 
Mas como há muita desinformação e manipulação quanto ao caminho Espiritual, nomeadamente em Fernando Pessoa, convém  tentarmos clarificar, na medida do possível ou parcelarmente, tal processo, realização e vivência...
                                   
A Morte, qual esfinge, sobre a Roda da vida, e a borboleta ou psique humana voltejante, e sob o esquadro e compasso do grande Arquitecto do Universo, expressão tradicional do que se tem intuído de uma ordem divina, sincronizadora e inspiradora, e de um Ser Primordial, mais até do que um Demiurgo,  a quem nos devemos  religar, merecida, amorosa e gratamente. (Mosaico romano de Pompeia).
Meditemos e sintamos então o que se transmite nos versos, tentando, iniciaticamente, sairmos da identificação e apego ao corpo físico e à personalidade e, consciencializando-nos das vestes e capas "assombrosas" dos corpos subtis, passarmos, finalmente, à nudez simples da consciência do Ser em si mesmo, do Espírito de origem Divina, capaz então de comunicar ou ser instruído supra-terrenamente pelos Mestres ou espíritos "mais" realizados, tal como o poema indica numa linguagem ascensional própria do ocultismo ou das ordens mágicas do começo do séc. XX, que Fernando Pessoa estudara e recriava numa linha sua, com bastante incidência no corpo: 
                                                   INICIAÇÃO 

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
..........................................

O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.


Por fim, na funda caverna, 

Os Deuses despem-te mais. 
                               Teu corpo cessa, alma externa, 
                               Mas vês que são teus iguais.

                                .........................................

                             A sombra das tuas vestes 
                             Ficou entre nós na Sorte. 
                             Não estás morto, entre ciprestes. 
                              ............................................
                              Néofito, não há morte.»

                                      
                          Ressurreição, no Tarot mais antigo (circa 1450), italiano, dos Visconti.
Embora sendo um poema de ensaísmo iniciático, quer tenha sido talhado racionalmente ou escrito inspiradamente, ele tem bastante  sabedoria e força, condensando uma vida de estudos ocultistas, nos quais a demanda iniciática foi uma presença importante ou fundamental, tendo sido dado talvez até já à luz-sombra do pressentimento da aproximação da morte ou desincarnação, que ele aliás tentou prever astrologicamente.
Demanda na qual o entendimento dos símbolos e a sensibilidade a eles foi muito valorizada pois, por tais modos, os sentidos e caminhos ascensionais da vida se revelariam melhor; daí as suas múltiplas leituras ocultistas e simbolistas que a sua biblioteca espelha, hoje na Casa-Museu em Campo de Ourique,  e das quais assinalou em carta juvenil de 1915 a Mário de Sá Carneiro, como das mais importantes no impacto anímico-espiritual, a de Hargrave Jennings, The Rosicrucians, their Rites and Mysteries (de 1907), e as de Teosofia que estava traduzir para a Editora A. M. Teixeira, leituras que depois foi aprofundando em várias  direcções, em relação às teosóficas opondo-se mesmo, as quais se depreendem ou reflectem dos seus ensaios, fragmentos e poemas mágicos, ocultistas, iniciáticos. 
No ano de 1915, em pleno período de euforia dos dois números da revista Orpheu,  experimentou alvoradas dos  sentidos supra-físicos, o que de certo modo constitui uma iniciação, ou um sinal dela, tal como escreveu, ainda que cinco anos, depois à sua namorada Ofélia Queiroz, para em parte justificar, exagerando ou não, o rompimento do namoro: «O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam». 
                                          
Ora neste poema escrito já em idade madura podemos ver a morte tanto  literal como morte interior em vida,  em ambos os casos dentro um percurso iniciático, no qual os iniciadores de sucessivos planos - Anjos, Arcanjos e Deuses, ou seja, estes últimos as entidades ainda mais elevadas que os Arcanjos e às quais Fernando Pessoa se refere em alguns fragmentos acerca dos graus das Ordens Mágicas -  abrem o iniciando a limpezas ou reduções de conteúdos de consciência exteriorizante,  as quais culminam na entrada da gruta ou caverna, tanto telúrica como do íntimo Ser, onde se reconhece, verticalizado ou axializado entre os ciprestes, árvores de folha perene, como um espírito imortal e divino, e donde retorna iniciado, seja porque lhe dizem e o sente, seja porque o sente e o diz, ou nos diz: "Não há morte, Neófito!"... 
 
 Certamente que há outros aspectos subtis e simbólicos de estados conscienciais nas imagens e palavras empregadas por Fernando Pessoa, tais como a multicolorida e animada Estalagem do Assombro, ou ainda a nudez que corresponde ao silenciar de todo o pensamento e identificação externa, mas tal aprofundamento irá sendo realizado aqui progressivamente  ou mesmo noutro texto futuro...
A iniciação foi lida e estudada, concebida e intuída por Fernando Pessoa tantas vezes e por tantos modos (tendo tido mesmo  projectos de livros, dos quais há textos de duas ou mais páginas) que consideraremos agora apenas alguns aspectos, tais como o intensificar da capacidade de compreensão sentida do interior dos seres e coisas, a que chama o lado simbólico ou espiritual da Vida, ou ainda o ser a iniciação como um sopro anímico-espiritual que é transmitido por símbolos, acontecimentos ou por alguém. 
No seu caso devemos mencionar  mais especificamente como seus relativos mestres ou iniciadores alguns dos seus familiares, como a tia Anica e, alegadamente em textos de escrita automática, o pretenso espírito do platonista de Cambridge  Henry More e, depois, por presença real e forte o mago e ocultista inglês Aleister Crowley,  com quem se encontra algumas vezes no ano 1930 quando o chefe da Ordem da Golden Dawn esteve em Lisboa, e, por fim, subtil e espiritualmente,  o mestre Jesus Cristo. 
Iniciação que foi e é também, como ele escreve, um dissipar gradual de ilusões ou um despertar energético-consciencial e unificador e unitivo, que abre o ser às dimensões subtis e espirituais, suas, dos outros e do Universo.
Este processo gradual foi também classificado por Fernando Pessoa como uma alquimia espiritual e em textos assinalou mesmo que tipos transmutações nos nossos metais interiores deviam acontecer, nomeadamente o Cobre do Egoísmo que devia passar a ser desinteressado e assim estar mais na Liberdade, a Prata da Vaidade que se deveria transmutar e aproximar-se da Igualdade entre os seres e, finalmente, o Ouro do Orgulho ultrapassado, sublimado, ao se aprender e ao realizar-se mais a Fraternidade, tal como Fernando Pessoa, contra ou vencendo a sua linha ou tendência mais individualista e selectiva, consegue  afirmar em alguns raros textos.
Neste sentido corre a purificação final do poema da Iniciação, quando os Deuses, ou seres mais elevados, o despem de  subjectividades e especulações e fica nu ou exposto ao núcleo ígneo e solar do espírito, algo que Fernando Pessoa contudo não vivenciou tanto como desejaria em vida. Mas reconhecer-se-á, tanto no poema como em vida, ainda assim, como irmão desses elevados seres, a quem chamou num poema de 1934 Superiores incógnitos, por mim lido e transcrito na obra Poesia Profética, Mágica e Espiritual, em 1989.
No sentido iniciático (interior e não de iniciações externas) da alquimia áurea, do processo de transformação espiritual incessante e longo, escreveu ainda: «A Grande Obra é o elaborar em nós, no sentido estrito e pessoal, a transmutação do chumbo do nosso ser perecível no ouro do nosso ser que não perece.» 
Este poema dirige-se então, e orienta-nos, para a entrada profunda e libertadora em nós mesmos - espíritos supra-cerebrais - capazes de, chegada a hora da morte, atravessarmos o umbral ou abismo da extinção da consciência cerebral e entrarmos pelos planos energéticos, astrais e psíquicos,  estando já unificados e identificados à centelha divina em nós e, quanto a mim, no corpo espiritual que conseguirmos talhar ou gerar em vida.... 
Na demanda de realização desta consciência superior interna convergem em Fernando Pessoa certas interrogações elevadas por ele feitas, que transcrevemos traduzindo do inglês: 
«Individualmente alma e corpo são um, mas a alma é mestre do corpo no sentido inferior, assim como o Cristo é mestre no sentido interior. Está o mestre separado contudo inseparado? Quando a morte ocorre a unidade dual torna-se uma unidade dupla? É este o significado da frase Grega, “morrer é ser iniciado"?» 
Refira-se que este "morrer é ser iniciado", que vinha da milenária Antologia Grega, fora também utilizado por Antero de Quental, como epígrafe inicial de um dos seus sonetos, donde Fernando Pessoa o deverá ter retirado, e por isso neste artigo inserimos então a imagem de um poema de Antero dessa luta entre Anteros, o Anjo do Amor correspondido, e Thanatos, o Anjo da Morte, que tanto ele como Fernando Pessoa viveram, por vezes bordejando e cultivando abismos perigosos e incomensuráveis nas suas repercussões, e que o Fausto e o Livro do Desassossego, a sua "produção doentia" como lhe chamava, muito contêm ou exalam...
                                                             
Antero de Quental
foi muito admirado-amado e elogiado, por Fernando Pessoa, sobretudo em jovem, traduzindo até muitos dos seus sonetos para inglês, mas mais tarde escreveu num apontamento que Antero sucumbira às provas iniciáticas da Ordem de Cristo, por ter tido relações maçónicas, num apontamento pouco claro e algo mistagógico, ou seja, imaginário, se bem que possamos pensar que Fernando Pessoa considerara maçónica a Ordem do Raio, que Antero de Quental estudante em Coimbra fundara com os irmãos Sampaio e dinamizara, quando tal ordem só mais tarde, e já quando Antero não estava nela, se tornou uma ordem maçónica. 
Claro que Fernando Pessoa literariamente considerou-o sempre a grande ponte, com Cesário Verde, para o Modernismo do séc. XX.  Ora Antero, como todos sabemos, escreveu muitos sonetos ligados à Morte que ele tanto cultuou, e afirma o "morrer é ser iniciado", mas não desenvolve a viagem iniciática no além, e em graus ascendentes, como vemos nesta descrição de Fernando Pessoa, que certamente podemos pôr em causa na exactidão da imaginação esquemática dada por Fernando Pessoa, na qual põe em acção duas das tradicionais ordens celestiais, Anjos e Arcanjos e, depois, seus superiores, os Deuses, a participarem no processo iniciático, trabalho ou processo de unificação interior que deve acontecer ainda em vida terrena, com a ajuda do Eu espiritual, do Anjo da Guarda, do Mestre e do Corpo místico da Humanidade a que tem acesso. Esta unificação também ocorre com a morte mas diz-se que mais demoradamente. E certamente em ambos os casos (vida e morte) sem esta presença de tantas entidades ou seres espirituais tipificadas, exigidas por preconceitos esquemáticos ascensionais especulativos, provavelmente por força sugestiva do que lera e aprendera pela ordem da Golden Dawn, então dirigida pelo mago algo extremista Aleister Crowley.
Quem deu uma valiosa visão do processo ascensional da morte iniciática foi o humanista do séc. XV Giovanni Pico della Mirandola, ao considerae a primeira morte como a separação da alma do corpo e a segunda morte como o beijo e abraço da alma com Vénus isto é o Amor Divino, algo que infelizmente nem Antero de Quental nem Fernando Pessoa conseguiram muito, embora Antero, na sua juventude, estudante e poeta do Mondego, tenha voado muito alto nas asas do Amor humano, platónico e não só, e no Amor divino à Verdade, ao Bem e ao Belo. Mas quando morreu, até onde ele subiu, libertando-se precoce ou voluntariamente da tumba (sema, como lhe chamavam os iniciados gregos órficos) do corpo (soma) e na, e rumo à, Mors-Amor libertadora, e quem o poderá ter ajudado, não é fácil intuir-se. De igual modo, a passagem transicional de Fernando Pessoa é, quanto aos seus guias no momento e no além, um mistério.
Outro aspecto que resulta da demanda pessoana da Iniciação é inegavelmente a valorização da intuição pois, a iniciação, através do estudo e da sensibilidade simbólica, deveria resultar num desenvolvimento da compreensão e intuição do lado interno e divino dos seres e da coisas, dimensão que tanto nos inclui a nós  como aos outros e os  ambientes, pois para Fernando Pessoa também eles (ou mesmo paisagens) são dotados de alma, como por mais de uma vez o afirmou, numa certa intuição da unicidade da existência, a denominada anima mundi dos antigos greco-romanos.
Neste entendimento, a iniciação é primacialmente uma gnose, um auto-conhecimento espiritual e libertador cultivado, realizado e transmitido, embora com diferentes níveis,  desde os tempos mais antigos em quase todos os povos, no Ocidente mais reconhecidamente  nos Mistérios Gregos (algo que Fernando Pessoa afirmou repetidas vezes, referindo a filiação neles dos gnósticos, dos templários e das ordens secretas), até aos nossos dias, e assim, no seu testamento espiritual de 30 de Março de 1935, Fernando Pessoa afirma-se religiosamente Cristão Gnóstico e confessa-se iniciado  na tradição e ordem Templária. 
Neste sentido o seu Mestre principal (e tantos foram os textos e poemas em que referiu os Mestres e os Anjos, tal como demonstrei nas entradas respectivas no Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, coordenado por Fernando Cabral Martins) e o que terá mais invocado no fim da vida, e quem sabe à hora da morte, sempre misteriosa e sobre qual incide o seu último e humilde pensamento e texto conhecido: "I know not what tomorrow will bring", "Desconheço o que o amanhã trará", teria sido o mestre Jesus,  o Cristo, directa ou indirectamente...
                                
Muito provavelmente será a quem alude na carta autobiográfica a Adolfo Casais Monteiro, de 13-I-1935, talvez lembrando-se de Antero de Quental quando este se descreveu em 14-V-1887 a Wilhelm Storck. Nessa carta, explicando o seu ocultismo, refere o Grande Arquitecto do Universo, mas que não acredita na comunicação directa com ele, mas sim com seres intermediários. Será noutros fragmentos e textos que Pessoa afirmará ser Jesus um laço ou o laço entre a Humanidade e a Divindade...
Ora no seu testamento auto-biográfico de 30-III-1935, oito meses antes de desencarnar, reafirmará isso: «Posição iniciática: Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.» 
Porque preferiu Ordem Templária de Portugal à designação de Ordem de Cristo de Portugal, com que por vezes se identificou ou epigrafou textos, é significativo embora ainda pouco esclarecido...
Quanto à capa ao ombro do poema não será a de um cavaleiro templário em iniciação, pois não diz ele que foi iniciado nos três graus menores da Ordem?
Certamente que este poema e, no fundo, a Iniciação em Fernando Pessoa, em nós e na História é uma demanda da jóia ou cálice precioso do Graal, da comunhão do Espírito...
  Possa a leitura recitada ou de cor, ou meditada silenciosamente, do poema da Iniciação produza harmonizar e despertar interno anímico-espiritual e florescimentos bemfajezos, é o que todos desejamos ou aspiramos, ou seja,  que brilhe mais tanto a auto-consciência espiritual como o Dharma, missão e dever de cada um, no grande Campo unificado de consciência, energia e informação, tanto mais que planeta física e eticamente está tão necessitado de acolher e desenvolver mais a Luz, a Fraternidade e o Amor divinos... 
Pax, Lux, Amor! Vale!
                                                     
                                           Unio Mystica, pintura do mestre alemão Bô Yin Râ.