terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Leonardo Coimbra, Testemunhos dos seus contemporâneos: Mário Beirão, João de Barros, Alberto de Serpa, Alves Correia, A. Correia de Oliveira, Sousa Costa, Umberto Araújo e Eudoro de Sousa.

                                                              

 Avançando na revisitação da obra Leonardo Coimbra, Testemunhos dos seus contemporâneos,  apresentamos mais alguns dos depoimentos dos quarenta companheiros, amigos e alunos de Leonardo Coimbra, transcrevendo deles informações, ideias e frases estimulantes e luminosas:
                                        
Comecemos pelo 13º participante, o p
oeta saudosista Mário Beirão (1890-1965), autor dum soneto Solilóquio de Leonardo Coimbra, num lamento de noite obscura ou de exílio, bastante sentido ou cultivado na época, nomeadamente em Augusto de Santa-Rita  na sua vibrante Justificação da revista Exílio, de 1916, e onde Fernando Pessoa contribui também forte e esotericamente, terminando-o assim: «Mas, à flor dos meus ais, fulgindo, esvoaça/ Éterea voz... sonhas (eu sei!) comigo,/ Fonte piedosa, múrmura, da Graça!-» Anote-se que Leonardo Coimbra escrevera a crítica de dois dos seus livros: O Último Lusíada e, em 1923 na revista Águia, Pastorais, neste desenvolvendo uma valiosa teorização sobre o movimento da alma para o outro mundo e que nasceria «da inquietação do vazio, duma carência», a que se sucede o sentimento duma presença partir da qual se gera a «percepção espiritual, dando visões, que se garantem pelas profecias ou poderes de alegria e saúde com que se acompanham», visão que lhe «parece ser um privilégio da santidade ou beleza moral». Eis um valioso contributo de Leonardo Coimbra para a arte e ciência da Meditação...

O 14º contributo é de João de Barros (1881-1960), notável poeta, político republicano e pedagogo. Intitulado Leonardo Coimbra, depois de confessar que ouvira Leonardo pela 1ª vez em 1911 no Teatro Sá da Bandeira, do Porto, descreve a sua arte da oratória, ao estilo de Jean Jaurés, que era «um construtor da própria eloquência, erguida a pouco e pouco, à medida que ele falava, até aos mais elevados cimos da oratória, palavra a palavra, momento a momento.
Leonardo Coimbra dava-me de facto, a mesma impressão: - os conceitos iam-se edificando, sobrepondo, subindo pedra a pedra, atingindo por fim vertiginosa altitude de emoção e de pensamento. Espectáculo admirável! Não duvidei da justiça dos elogios que o meu inesquecível Cristiano de Carvalho [1874-1940, notável desenhador e  animador cultural e político] prodigamente lhe dispensava.
Passado tempo, publicava Leonardo Coimbra esse livro único em toda a literatura portuguesa moderna: A Alegria, a Dor e a Graça, poema lírico dum artista excepcional que sabia transformar em poesia as mais nobres e profundas ideias.
O deslumbramento - confesso-o sem exagero de nenhuma espécie - continuava. Não sou crítico, e ignoro tudo ou quase tudo da filosofia. Não me atrevo, pois, a discutir as criações e doutrinas filosóficas de Leonardo Coimbra. O que me atrevo, porém, é a afirmar que muitas das páginas d'A Alegria, a Dor e a Graça são páginas de antologia, que entre bastantes outras não deixarão esquecer o nome e o génio do seu autor. Possuem uma densidade e uma capacidade capacidade de irradiação, que nos cativam e iluminam a alma. Igualá-las em seu valor e em sua beleza - não é fácil. Excedê-las - é impossível.»
Após esta recomendação à leitura de tão espiritual obra (e que já abordamos parcialmente neste blogue), João de Barros concluirá o seu belo testemunho, pois convivera com ele familiarmente vários anos, desenhando um quadro impoluto de Leonardo, que terminava assim: «Era na mais pura e digna acepção do termo, um grande homem, um homem de forte, ampla e delicada estrutura de espírito (...)», ou talvez dizer melhor, um homem de grande sensibilidade, com uma alma, corpos subtis e capacidades psíquicas poderosos, abertos ao infinito, ao Divino e ao próximo...

O 15º participante o poeta e presencista Alberto de Serpa (1916-1992), partilha um fulgurante poema de hermenêutica religiosa de Leonardo, em duas quadras, À Alma de Leonardo Coimbra, Agradecendo a fé que em mim renovou, a primeira interrogando as vias e disputas em que Leonardo se envolveu, a segunda e última: «Mas quando a morte, de asa aberta/ Tua fronte roçou e a venceu, A tua vida estava certa:/ O horizonte era só o céu.», pois a sua alma  na graça da infinita Divindade e mesmo do Cristo, confiava, aspirava e tendia ao mais alto. O poema veio a ser publicado em 1952 no seu livro Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, em que homenageia os seus melhores amigos, desde Leonardo Coimbra a José Régio, Ribeiro Couto, Carlos Queiroz, Frederico Schmidt, António Botto, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, etc.  

Na 16ª contribuição,  À Memória de Leonardo Coimbra, o padre, franciscano e democrata Alves Correia (1886-1951)  analisa e transcreve o percurso filosófico de Leonardo Coimbra à luz  de comparações com grandes filósofos, entre os quais Antero de Quental, e partilha um ramalhete de pensamentos e histórias da sua convivência com Leonardo, nomeadamente o amor a S. Francisco de Assis que os unia, valorizando e citando do seu livro S. Francisco de Assis, Visão Franciscana da Vida:«S. Francisco de Assis é o homem espontaneamente cristão, o homem que reencontra a natureza paradísiaca, aquele que é o tipo  divino, que é a ideia do acto do pensamento criador.», ou seja, um arquétipo dinâmico, fonte inspiradora nossa.
E nas comparações dos dois "filósofos monadologistas e dinamistas": «Antero de Quental foi mais hegeliano do que Leonardo Coimbra e Leonardo Coimbra mais platónico do que Antero.
O espírito atribulado do Antero, se conseguiu sair do inferno do desespero, em que se contorceu, desde 1874 a 1880, não pode libertar-se do limbo da unidade ou confusão panteísta.
[Em Antero] O ideal supremo da perfeição moral, o santo, compreensor e ao mesmo tempo intérprete do Universo, ficava imanente ao espírito humano, dominado mas absorvido, dignificado mas anulado. 
Mais auto-consciente do seu eu espiritual, da sua centelha divina, diremos nós, Leonardo Coimb
ra «firmava-se num individualismo irredutível», e dizia:«chamem-me, se quiserem mónada; não me resigno, porém, depois tantas filosofias, a ficar só com as últimas sílabas - na-da. O que me apaixona na questão religiosa não é a separação da Igreja e do Estado, mas sim a separação nítida de Deus e do mundo», poderosas afirmações tanto da personalidade espiritual imortal humana, como da transcendência Divina...
                                         
O 17º contribut
o é de António Correia de Oliveira (1878-1960), o poeta nacionalista católico de Belinho, um soneto intitulado Leonardo Coimbra, onde traça bem a sua ascensão de "Artesiano verbo", "ainda Palavra e não Padre-Nosso", ao homem da acção amorosa e poderosa e, por fim, sua entrada no "Credo", pois «Leonardo, «Construtor de ideias,/tinha em seu coração, - além da veias/ do sangue, - os veios do Sinal-da-Cruz

                                                                       
O 18º contributo, de [Alberto de] So
usa Costa (1879-1961), Leonardo Coimbra, Orador, é um vívido testemunho, pois mostra a amplidão tremenda de Leonardo, que não se compadecia com visões de aspectos ou planos separados, e o seu percurso interior espelhado nos livros, narrando um episódio no Porto, no qual,  a convite de Leonardo, então Presidente da Associação  dos Jornalistas e Homens de Letras, discursou sobre a Montanha, o Marão e  Trás os Montes, com uma intervenção final de Leonardo a emocionar toda a gente e a gerar  um abraço estreito entre ambos, com os olhos emudecidos.

                                
                           Leonardo e Pascoaes, por volta de 1914. Amizades perenes...
O 19º contributo,
de Umberto Araújo, de quem pouco sabemos, além de ter prefaciado em 1924 uma obra, na conimbricense Atlântida Editora, acerca do "bandoleiro" João Brandão, e em 1925 ter dado à luz Incoerências, dos mais vibrantes e simultaneamente mais completos sobre a sua vida e alma, percurso e morte. Oiçamos o princípio tão subtilmente clarividente:
«Felizes os que sentiram o bater próximo de asa
s de tão grande espírito, o frémito da sua inspiração; a força galvânica da sua eloquência caudalosa e borbulhante, arrastando as multidões, ao despenhar-se como uma catarata de Niágara, solene, arrebatadora, vertígica, sacudida por vibrações incoercíveis.

Era nesses momentos que pairava a grande altura o seu verbo prodigioso de cristão, a sua alma eleita de filósofo e de visionário, numa rajada nervosa que parecia o relâmpago fantástico de uma tempestade criadora.»
Depois traça a passagem de Leonardo pelo mundo do poder público, numa caracterização ainda hoje tão idêntica, dir-se-á, e como ele «não pode compreender os bas-fonds medonhos onde pululavam todos os vibriões da vida pública. E a desilusão foi tremenda e amargurante. Enganara-se. Um pensador de raça nunca se adaptaria às coisas mesquinhas e vulgares da democracia partidária. Existia uma antítese orgânica e fatal entre o primado da inteligência e a hipocrisia prosaica e vergonhosa do servilismo das coteries [grupinhos ou cliques]». Talvez discordemos no final, da visão que tem de Leonardo no fim de tudo, mas sendo instrutiva e psicologicamente bem vista, ei-la: «Leonardo Coimbra caiu. Foi o último herói forense imolado ao Moloch estranho das tramas parlamentares e apesar da sua envergadura de gladiador antigo, do seu panache vitorioso de moço resoluto e decidido, ficou na história calamitosa dos acontecimentos como um homem fracassado. Não por incompetência, mas somente por incapacidade manifesta de conformismo. Como tantos outros precursores da liberdade, deixou apenas atrás de si o exemplo simbólico e doloroso de um homem que lutou - mas foi vencido.»
Ou será que a sua v
ida e obra imortalizaram-no, e que as derrotas dos seus projectos educativos eram inevitáveis no dialéctica circunstancial e que o mais importante era a sua evolução interior, a sua realização espiritual e divina, que lhe permitiram ao morrer ir como espírito bem desperto e luminoso para os planos ou dimensões luminosos e elevados do mundo psico-espiritual, tendo portanto vencido as diversas provações, tanto mais que a sua obra pode hoje ler ser lida, meditada, dialogada?

                                                                 
O 20º contributo, um dos que mereceria ser transcrito in toto, de Eudoro de Sousa (1911-1987), um notável filólogo, helenista e mitósofo, no Brasil desde 1953 e fundador do Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Brasília em 1962, intitula-se O Pensamento eloquente e romântico de Leonardo Coimbra, e é bem fundamentado e esclarecedor do ser e pensamento de Leonardo, contextualizando-o na história da Filosofia em Portugal, nomeadamente na sua luta contra o positivismo de Augusto Comte e de Teófilo Braga, dominante no Curso Superior de Letras de Lisboa, valorizando a biografia de Leonardo por Álvaro Ribeiro, e demonstrando que, ao contrário do que se dizia, o bergsonismo de Leonardo derivava da mesma oposição ao positivismo "circunstante e dominante"  e que antecedera até Henri Bergson (1859-1941) em certos aspectos das afinidades conceptuais e religiosas que tinham, ou que com originalidade formularam, tal a função mediadora da filosofia entre a ciência e a religião (e ambos se converteriam no fim da vida, embora Leonardo sempre fosse um cristão), suplantando-o mesmo quanto à intuição, "complementar da razão e do intelecto". Também realça o romantismo e idealismo do movimento da Renascença Portuguesa e da revista A Águia, em oposição a futuras  revistas mais caracterizadas por «receituários de técnica económica e pedagógica», e mostra a grande comunhão e complementaridade de Leonardo com Teixeira de Pascoaes na valorização do Povo, da Mulher, do Feminino, elogiando, como muitos outros e até por outras perspectivas, a obra prima filosófico-poética de Leonardo: «é ainda na Alegria, a Dor e a Graça, que se nos deparam as mais generosas páginas acerca da infância que jamais foram escritas em língua portuguesa» (...); valorizando muito  nela e em Leonardo  a união do pensamento ou especulação, com a a expressão, estilo e no fundo «a imaginação que encarna e vivifica a especulação». Ora tal união,  em Leonardo, manifestava-se também na palavra eloquente, no orador, no tribuno, no professor,  com uma tal força e qualidade que grande era «a largueza e fundura do sulco de admiração que dele nos ficou», admiração que «é a maior abertura, ou o maior tropismo, da alma à luz irradiante do exemplo».
E apoiando a acus
ação de que Leonardo fora um orador romântico, esclarecê-la-á  e concluirá: «Não há dúvida: foi um orador «romântico». .Só esta preocupação do Mistério longínquo, que na universal diversidade do Cosmos se refracta, deixando cintilas de luz aderentes aos símbolos do Povo, da Criança e da Mulher, só esta incessante preocupação do Mistério - o do Eterno Feminino, o da Infância Edénica, o do Povo - mar infinito das possibilidades sociais -, só este traço tão vincado e tão característico da fisionomia espiritual de Leonardo Coimbra, bastaria, de per si, para justificar e verificar a apelidação de orador «romântico».
Quan
to à acentuação minoritária e depreciativa da opinião comum, deixemo-la ficar inerte nas «almas não verídicas» nos «esboços de almas, nos cárceres utópicos dos únicos verdadeiros ateus: deixemo-la morrer sufocada na aridez da indiferença dos que em vida nunca admiraram, e portanto, nunca puderam amar.»

Imagem extraída da página no facebook "Eudoro de Sousa", que foi  colega e amigo de Agostinho da Silva  e profundo estudioso e conhecedor da riqueza dos mitos gregos como iniciação à complementaridade dos opostos e do imanente e transcendente.

Sem comentários: