António Carvalhal é hoje um poeta desconhecido, que terá vivido não certamente entre as datas que a Base Nacional de Dados, a Porbase, lhe atribui, de 1834 a 1890, pois é nas primeiras décadas do século XX que surgem publicadas na Livraria Fernando Machado no Porto, algumas obras suas de poesia, bem frescas e com um ar nada póstumo: em 1900, Cantares. Depois dum longo hiato, em 1926, Estrada de Damasco. E logo de seguida em 1927 Esfinge: versos, e por fim em 1928, O Cancioneiro azul. Possuo a Esfinge, e como nela há um poema sobre Antero de Quental, e outros de teor tanto anteriano como espiritual, resolvemos homenageá-lo, trazendo-o à luz do século XXI.
Da sua biografia dele, no começo deste artigo em 31-10-2023, quase nada poderei dizer, pois posso deduzir apenasalguns traços anímicos pelo conteúdo do livro dedicada à misteriosa Esfinge, um in-8º de 104 páginas, bem impresso em 1927 na Tipografia Progresso, à rua Sousa Viterbo nº 81, Porto. Contudo, uns dias depois, pude encontrar outro dos seus livros, a Estrada de Damasco, de 1926, com uma dedicatória escrita por alguém em 1943, na qual chama a António Carvalhal "malogrado poeta".
A epígrafe inicial do livro Esfinge é, certamente, das mais utilizadas em livros, de Shakespeare: There are more things in heaven and Earth, Horatio, / Than are dreamt of in your philosophy, e abre-nos portanto à pluridimensionalidade dos seres, dos mundos, da vida. Segue-se um soneto dedicado à Esfinge, valioso, e no qual pensa ter decifrado seu enigma: a vida no inferno é horrorosa e a no Céu bela. Vemos portanto um pensador religioso ou espiritual, e com ideias do Bem e do Mal firmes. Seguem-se depois os vários sonetos, agrupados em três núcleos, Almas Heróicas, Cadáveres e Através do Mistério.
1º Almas Heróicas, com sete sonetos biográficos de S. Francisco de Assis, Camões, Antero, Frei Agostinho da Cruz, Dante, Leopardi, Baudelaire, Verlaine, Rollinat e Espronceda. Por eles vemos os seus mestres ou exemplares literários e logo as suas linhas de força, de afinidade, de aspiração, de ideais. E deles falaremos no fim.
2º Cadáveres, tem dez sonetos sob a temática da morte, e termina com os Suicidas onde não os aprovando nem condenando, condói-se por os ver «à beira dos abismos caminhando/ Alucinados, espectrais buscando/ o silêncio da luz libertadora». É muito legível e sensível a influência dos sonetos de Antero de Quental e de algumas das suas ideias, imagens e sentimentos sobre a incognosciblidade ou silêncio de Deus, e a morte, ora vista como má e destruidora, ora como amante e libertadora, e os mortos ora vistos em decomposição, ora como seres espirituais que se libertaram. As duas quadras do soneto os Mortos são muito idealistas e perfeitas, e merecem a transcrição:
Dessa Índia de sonho e formosura...
Tal como do soneto a Morte, onde o magistério anteriano deificante da Morte atinge uma florescência bela e perfeita (sobretudo nas duas quadras, que transcreveremos), mas, claro, altamente idealizada, algo enganadora até no que pode atrair para ela, pois o post-mortem no mundo astral é muito variável, e o do suicida muito espinhoso:
Eis o que a Morte diz aos seus eleitos:
"- Vinde gozar em mim a Eternidade,
Que eu sou a paz e sou a liberdade,
Ó grandes corações insatisfeitos!
Vossos males serão por mim desfeitos;
Em mim encontrareis felicidade...
Inimiga da dor e da Ansiedade,
Sei dar consolação aos vossos peitos!"
O 3º núcleo Através do Mistério, que se inicia com uma citação de Antero de Quental, contém dezanove sonetos sobre aspectos importantes do caminho espiritual da Vida, com títulos bem profundos ou elevados: O Palácio do Mistério, com quatro sonetos, O Som, Sabedoria, Hino à Ideia, Amor sem Palavras, A Alma Inimiga, Noite Espiritual, A um Teósofo, A hora que passa jamais volta, O presságio, Contemplação, Vida etérea, Elevação, Vida Espiritual, Redenção, Hino ao Sol.
Assim como o 2º núcleo,, Cadáveres leva como epígrafe a redutora mas apropriada citação das Odes de Horácio Pulvis et umbra sumus, Pó e sombra somos, e o 1º núcleo, valorizador das Almas heróicas, estava antecedido pela citação, bem romanticamente imortalizadora (já que depois de mortos quase todos são enaltecidos), de Alfredo de Vigny:
Glaces et tourbillons de notre traversée?
Sur la pierre des morts croit l'arbre de grandeur..."
Gelos e redemoinhos de nossa travessia?
Sobre a pedra dos mortos cresce a árvore da grandeza... "
o 3º núcleo, Através do Mistério, é antecedido por uma quadra, do soneto Contemplação, de Antero, ao qual já dedicámos um texto: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2017/03/contemplacao-soneto-de-antero-quental.html, e aponta para a vida espiritual imortal...
Não entre as formas já e as aparências,
Mas vendo a face imóvel das essências,
Entre ideias e espíritos pairando...»
Há pois uma progressão de realização ao longo dos três núcleos: o 1º apresenta os exemplos de seres ou obras que se imortalizaram, no 2º passa pela descida à morte física e como nela muitos ficam contidos ou se extinguem e é no 3º que se dá a iniciação, o caminhar já nesta vida Através do Mistério, do além, da vida depois da morte, da esfinge espiritual e Divina, em dezasseis poemas bem ricos e profundos.
Se quiséssemos escrever pequenos ensaios ou mesmo poemas sobre cada um dos títulos, provavelmente apenas em alguns aspectos coincidiríamos com o que António Carvalhal sentiu, realizou, transmitiu. As associações de ideias, que as ideias-forças dos versos nos fazem desencadear, só em certos casos serão as mesmas que as suas, mas os títulos de Palácio do Mistério, ou da Ventura, e o Hino à Ideia são dos mais anterianos. A Sabedoria, como linha de demanda da sua alma, a Noite Espiritual, apontando à mística espanhola e à súbita ausência da graça divina, o da harmonizadora Vida etérea lembrando um título de Teixeira de Pascoaes, o A Um Teósofo, animando-o no seu difícil caminho, pois estará sempre acompanhado, e o último, o Hino ao Sol, bem poderoso no culto ao Sol que tanto pode ser o dos naturistas, o dos egípcios de Akhenaten, o Sol invictus mitraico-romano ou mesmo apenas o Primordial...
Nos restantes três sonetos do Palácio do Mistério aborda a porta da Linha recta do ritmo e pensamento próprio por onde ascende "para o Amor, para a Luz, a Bondade, para o princípio e fim donde viemos..."; e por fim a porta do Número, onde vê, descidas do Único Ser Supremo, as almas sete vezes desunidas (provavelmente pelos seus sete corpos-princípios), com uma íntima referência nos tercetos finais que pode ser a de um numerologista ou então a de uma súbita intuição do número regente ou dominante no caminho das almas:
O seu número bem distraída
E todo o seu mistério penetrou.
O 4º poema, Hino à Ideia vale a pena ser meditado, pois no séc. XXI o culto das ideias e ideais, valores e causas, parece ter sido trocado pelo das imagens, dos likes, da desinformação, do consentimento do mal:
E sabe dar, também, tanta harmonia,
Como a ideia que anima a forma fria
E pelo mundo espalha a sua luz.
Para o bem, para a glória mais conduz
Quanta mais alta for a fantasia
E nada iguala a indómita energia
Com que o sonho ela doma, ela traduz.
Livre, divina, clara e pura ideia!
A minha alma te adora, e já se alteia
Para o teu esplendor e formosura...
Que um dos teus raios até ela desça,
E a inunde toda, quando desfaleça,
Para maior glória, maior ventura!"
Nos outros poemas há visíveis ou claras influências do magistério de Antero de Quental, mas também do platonismo e de espiritualidades que António Carvalhal soube incorporar ou assimilar na sua alma poética e de aspirante espiritual, tal a chama de puro amor dos olhos, a alma perversa que o bem odeia e nunca se comove, o regressar dos mundos espirituais, a anteriana voz da "consciência que dentro em mim protesta", o mergulho no oceano em busca da pérola, o viver plenamente a Hora presente, o saber ouvir ou intuir os sinais e advertências, o caminho para o Bem, a Verdade e o Amor, e que surgem bem expressos. Por exemplo, no Contemplação, de novo ouvimos Antero bem exponenciado, seja na 1ª quadra, "Nem só para este mundo é que vivemos, Nem nesta vida, aqui, tudo termina; Outro mundo de luz, pura e divina, Nos chama e espera, e não o conhecemos.", seja no terceto final: " Muito acima das coisas perecíveis, Das paixões e dos ódios invencíveis, Paira a Vida infinita e espiritual!" Os últimos sonetos estão bem cheios de valiosos ensinamentos espirituais, tal no Elevação, a 1ª quadra:«Todos para a Beleza caminhamos Mais crentes e fiéis os corações, Sem já olhar a gozos e ambições, Mas ao puro ideal que alevantamos." E o 1º terceto: "Para a Luz, para o Bem, para a Verdade, Seja a nossa divisa e o nosso canto por terra e céus, por toda a imensidade..."
Talvez os dois sonetos que transmitem mais luz e perfeição sejam os de Frei Agostinho da Cruz, retratado no seu regresso à serra mãe, a Arrábida, na pobreza e simplicidade, todo dedicado ao Amor divino e da Natureza ("Longe dos homens, longe do ódio seu, Entre feras achaste só bondade... No doce amor divino e na humidade, Teu puro coração não mais sofreu./ No sereno refúgio duma cela, Ou no seio da inculta natureza, Tua vida era simples e era bela..."), e o do Antero de Quental, este certamente o mais conseguido, pois sentem-se nas ideias e ideais de António Carvalhal o sopro do magistério anímico do ardente peregrino e cavaleiro que foi Antero de Quental.
Talvez alguma alma devota que o consiga vê-lo no seu silêncio esfíngico, ou que o saiba ler e logo ouvir profundamente. E, comovida, confesse a felicidade de sentir-interpretar o coração do vate e seu guia para as alturas, e o Bem e o Amor que sente:
ANTHERO
Domados por teu pulso de gigante,
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