quarta-feira, 20 de julho de 2016

Antero de Quental e a Amada, e o soneto "Idílio", num jardim de Lisboa, e as dimensões indizíveis e cósmicas do Amor.

         Antero de Quental, imortal poeta-filósofo ou talvez mesmo filosófico-espiritual, foi também imortalizado em alguns jardins lisboetas, tais como o da Estrela e o das Amoreiras. 
Se no primeiro jardim houve cerimónias públicas muito concorridas e das quais há registos (por mais de uma vez, pois houve uma estátua antes da actual), numa discursando até o grande pensador português Leonardo Coimbra (que aliás consagrou ao pensamento filosófico de Antero um livrinho da aprazível e mimosa colecção Lilás, portuense, dos anos 20), no segundo jardim, o das Amoreiras, provavelmente nada ficou registado nos jornais; porém chega-nos os dois tercetos finais dum soneto diáfano, que se dá muito bem com as árvores floridas ao sol ou com as folhas caídas aos ventos outonais ou, eventual mas significativamente, com um par de namorados...
Talvez seja então oportuno lermos mais vagarosamente  comentarmos os dois tercetos ou seis versos finais, algo que os poemas (e os poetas...) lidos em geral à pressa agradecem, tanto mais que a vida amorosa ou mais sentimental do poeta, e que pode ser sempre interpretada na linha dos Fiéis do Amor, amantes da Nossa Dona Santa Sophia e da desconhecida Alma Gémea, fica-nos sempre algo fugidia,íntima, como que na sombra ou o ideal.
 Transcrevamos o soneto inteiro:                            
        Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar, das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas,
Ao longe, no horizonte, amontoadas: 
 
 
  Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão, e empalideces...

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.
 
          1º verso do 1º terceto:  - Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Antero introduz-nos numa relação já prolongada ou duradoura, que é entrecortada por momentos repentinos de silêncio, de rapto, de emudecimento, provavelmente provenientes da alma sentir fortemente o amor, ou então sentir algo misterioso, impressionante. A escolha do emudecer pode não ter sido por mera rima e remete para um ambiente misterioso, talvez com leve apreensão.
                            2º: - Não sei que luz em teu olhar flutua;
Antero introduz-nos na dimensão luminosa do olhar, pois cada olhar irradia uma certa luz conforme o estado consciencial, anímico, mental e até corporal da pessoa. Não nos diz que a luz sai dos olhos, ao modo dos raios, os quais outrora se consideravam poderem ser tanto bênçãos como maus olhados, mas mais modesta e candidamente confessa a sua dúvida quanto à linguagem ou mensagem que os olhos exprimem nesses momentos em que a vê a flutuar, o que é o mesmo provavelmente que ondular.  Como se pensasse: «Além das várias luzes em que eu consigo ver ou adivinhar o sentido, pensamento ou intencionalidade delas, outras há que me escapam, tal como a que flutua agora no teu olhar, e que nos faz ondular ou pairar, e silenciar, nela».
Há aqui uma atmosfera de subtil levitação por uma intuição misteriosa, muda, indefinível, indizível, mística. Poderemos pensar ou pressentir que é a Luz do Amor, a Luz do Espírito, já que realmente ela pode desvendar-se misteriosamente dos olhos, beatificamente por vezes... 
                      3º: - Sinto-te tremer a mão e empalideces...
Talvez na linha de Edgar Allan Poe, Antero parece afunilar o estado psíquico dos dois, ainda em suspense, para uma entrada maior do inconsciente em acção, involuntariamente, ao registar a tremura corporal e o embranquecer da face da amada.
Certamente que este tremer da mão tanto pode ser um frémito de desejo, como uma maior corrente vibratória passando pelas mãos dos dois, algo que ainda não se nos tinha desvendado neste momento de maior intimidade e unidade entre os dois amantes ou namorados, embora a Luz misteriosa o possa anunciar. Mas também pode ser de receio, já que a ele se junta o fenómeno do empalidecer e não tanto o amoroso ruborescer, embora a brancura pela sacralidade do sentimento vivido ou de um certo pudor possa acontecer.
Ora num poeta que sondou tanto a Morte, que a considerou tantas vezes a sua amiga libertadora, estas linhas podem levar-nos a pensar que o poeta pressentia a figura da Morte, que tantas vezes imaginou e poetisou, como que sobre o par, sobre a amada, influenciando esta até, como que querendo roubar Antero à simples relação humana ou mesmo à Amada ideal, pois ele estaria mais reservado para o Divino, as Ideias e Ideais, ou até no seu caso particular, para a Morte, libertadora das ilusões e apêgos mas também  do Amor terreno, enquanto ceifadora dele.
Este estremecer e empalidecer é certamente o momento determinante do 1º terceto e acto do poema: um sentimento ou intuição subtil, misterioso, insondável somatiza-se, causa um estremecimento, em si mesmo ambivalente (tanto mais que é até desejado o tremor, como sinal de sensibilidade amorosa em alguns contos tradicionais), e um fragilizante ou mesmo dramático empalidecer. Como será que Antero vai avançar, que linhas subtis moverão a sua pena (e assim era na altura...) de escritor, de inspirado, de filósofo, de vate?
                  4º: - O vento e o mar murmuram orações,
Subitamente, Antero cosmiciza sagrada ou religiosamente o ambiente e a relação e, embora subtilmente, pois apenas murmuram, o vento e o mar tornam-se presentes enquanto vozes de invocação ou adoração divina, e fazem com que pensemos ou imaginemos  na Natureza Antero e a Amada,  junto ao mar, contemplando as lonjuras e horizontes, ou mesmo recostados a algum penedo das costas oceânicas da ventosa Vila do Conde, e sentindo as orações, as aspirações da Natureza que não é muda, como ele tantas vezes sentiu e poetisou.
Impossível sabermos que orações, mantras, sons eles ouvem mas o que se torna evidente é a qualidade profunda e amorosa que sentem, intensificada por essa subtil capacidade tão querida de Antero e que é audição do Verbo, da Voz da Consciência, da Natureza e íntima, cuja audição ele tanto praticava e recomendava aos seus amigos, nomeadamente na emblemática carta a Fernando Leal.
Aqui ela surge na sua contraparte da Voz do Silêncio da Natureza, que murmura no vento e no mar. Terá o açoriano Antero do Quental em jovem alguma vez pegado numa concha e tentado ouvir, nas reverberações tão geometricamente perfeitas do enrolamento em espiral, segundo o número de ouro e a progressão de Fibonaci, o som do Mar? E que orações se lhe afeiçoaram nas hélices da sua alma e nos tímpanos da sua memória que agora, de mão dada com a amada, ao de cima vieram? Que campo psico-mórfico poderoso criavam os dois que trazia até si ou dialogava mesmo com as falas secretas dos elementos da Natureza ou com as repercussões do Logos Divino no subcampo unificado de energia-consciência em que ambos se encontravam?
Que orações, que vozes, que clamores, intuía Antero, com a amada, ou graças a ela ou impulsionando tal nela, no vento e no mar?
Sentiriam a felicidade do amor, diriam baixinho que o amor deles seria feliz, ou apenas exprimiam o drama do amor e da separação, vozes impessoais mas fecundantes das grandes correntes cósmicas que atravessam o planeta e a Humanidade? Ou ainda seriam ou brotavam louvores gratos dos espíritos da Natureza nos cinco Elementos presentes e intensificados pelo Amor de Antero e da sua misteriosa companheira?
Que orações seriam essas, perguntaremos nós,  ó Antero? Que orações acompanhavam o seu empalidecer, ó Amada? 
Seriam apenas sons de vogais, realçadas com o h da aspiração ou prolongadas com a nasalização? 
Seriam mantras orientais que a uma ocidental pátria lusitana chegavam, como que vindos do longínquo Ganges e do Oceano Índico onde, como cantara o outro grande vate nacional Luís de Camões, os Portugueses teriam ido "abrindo o mar profundo, em busca da grã-corrente"? 
Ou seria a fala amorosa das brisas perfumadas, tão cantadas na literatura Persa, e que Antero conhecera, e em especial pelos poetas místicos Rumi, Hafiz, Saadi, Attar, mas também por Bocage?
A este fundo cosmicizante, Antero acrescenta no verso seguinte a humildade da terra, o conúbio do céu e da terra, e a capacidade de eles dois estarem abertos às imagens e mensagens das coisas e seres, como nos diz a palavra poesia, poesis em grego, que significa ver, contemplar, ou a palavra sânscrita rishi, poeta vidente:
                       5º:  - E a poesia das coisas se insinua
Poesia que é assim voz, palavra, orações, verbo, ideia, logos, essência e que as almas mais sensíveis ou mais em amor conseguem receber, acolher, sentir.
Estamos numa teofania amorosa, em que a própria voz do Universo, das infinitas coisas nascidas e preservadas, vem participar na comunhão de duas almas que se tornam um cálice para a Unidade.
Antero de Quental então dá o mote final, como que a tenção deste belo poema emblemático:
                                6º: - Lenta e amorosa nas nossas almas.
Orfeu, os vates e rapsódios da Grécia e os rishis da Índia antiga, tão panteístas, estão presentes, pois é uma combinação da luz flutuante, do vento e do mar murmurantes e das coisas falantes que, banhadas no Amor Divino, lenta e amorosamente vão penetrando na alma, no par, numa Unidade.
Poderíamos pensar até que é o vento do espírito e o mar da alma que fecundam as coisas, seja do reino mineral seja da arte e indústria humana, que são essas cintilações da luz unificadora dos campos das palavras e ideias arquétipas que estão por dentro e por detrás de tudo que, vibrando mais pela convergência de dois seres no nome de Deus ou Amor e que o tornam presente, fazem manifestar ou desvendam a Omnipresença do Logos ou Sabedoria-Amor divinos.
Antero e a Amada, neste momento único, icchi go icchi e, como diz a Tradição Espiritual Japonesa, provavelmente fundiram-se num abraço ou num beijo, ou no que seja, cósmica, amorosa, divinamente.
Restará dizer, para assentarmos os corpo e almas que este poema de Antero do Quental está inscrito num banco de pedra do jardim das Amoreiras em Lisboa, e não no de madeira da Mors e do centro da cidade da Terceira, na ilha de S. Miguel, vencendo o Amor da vida, e onde por vezes provavelmente alguns namorados (anterianos ou não...) querendo sentir e acolher mais a graça do inflúvio da Alma do Mundo e do Amor, que não o da Morte, se sentam, dialogam, meditam e depois de mãos dados, em abraço ou beijo, lenta e amorosamente comungam com o Amor Divino, de tais actos se evolando belas energias e imagens para Antero de Quental, para quem ele mais amou e para a Alma e Amor de Portugal e do Mundo, e a Divindade, fonte do Amor...
Sentemos, assentemos, amemos, na Poesis, e na comunhão de Antero e da sua amada...

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