quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O jardim e busto Antero de Quental em Ponta Delgada, e os sonetos "Solemnia Verba" e "Contemplação".

 O jardim de Antero de Quental, aprazível recanto da Natureza dentro de uma cidade, Ponta Delgada, Açores, oferece árvores de grande porte, relvado, arbustos e sebes, água reflectindo o céu num lago, veredas e bancos, sombra e luz, criando assim um ambiente propício à paz, ao estudo e diálogo e à inspiração.  
Este discreto e simples jardim, antes denominado de Gaspar Frutuoso (o primeiro historiador açoriano, com as Saudades da Terra, nela vivendo de 1522-1591) e desde 18 de Abril de 1942, com a inauguração do busto, consagrado a Antero de Quental (1842-1891), relembra-o, acolhe-o e quem o avista de longe e por ele se interna não deixa de admirar-se com a simplicidade e a paz reinantes, quem sabe sob algum sortilégio anteriano.  E assim foi como ele nos surgiu ao longe numa súbita aparição e que fez deter a nossa marcha rápida no findar de uma jornada agro-florestal de seis dias aos Açores, com o Alfredo Cunhal Sendim e o Joaquim Malik.
 A superfície plácida das águas, a leve brisa que gera um murmúrio de ondulação, uma jovem estudante sentada na escadaria,  duas mulheres ou ninfas-musas ladeando o imortal pensador e poeta, eis um bom ambiente  oferecido a Antero de Quental  nascido nesta cidade em 1842 e nela dramaticamente fechando o seu anel de graça terrena em 1891, desiludido com o enfraquecimento do seu corpo e mente, e com o ambiente que subitamente se condensara malignamente sobre o seu desidério de se instalar definitivamente nos Açores, com as suas protegidas e os seus pensamentos e voos.
 As duas figuras femininas alegóricas, idealizadas e esboçadas pelo escultor Canto da Maia, mas só na década de 90 realizadas e acrescentadas, simbolizam a da direita o Conhecimento, a Filosofia, a Razão, e está apoiada em livros, tendo sobre a mão direita a interrogadora Esfinge, um ser e figura mítica que Antero bem desafiou e dialogou. A da esquerda, simboliza o Sentimento, a Afectividade, o Amor e parece ter um coração ardente na mão junto ao peito. 
Estão de certo modo próximas dos sonetos correspondentes pois no Solemnia Verba Antero alcança e reconhece que o Amor é o fim último da Vida e que para se chegar a ele todas as dificuldades e esforços valeram, e na Contemplação paira por entre ideias e espíritos, contempla a face das essências e sente (ou pressente) no sofrimento e luta da vida natural a aspiração à Luz e a um Fim supraterreno...
                                 
A tez de Antero de Quental surge irradiante de luz, o seu olhar é para o espaço infinito, ou talvez para nós, para o futuro, transmitindo-nos impulsos de coragem na luta pela Verdade e a Liberdade. 
A escultura, do notável escultor  açoriano Ernesto Canto da Maia (1890-1981), bem sofrido na vida pela morte precoce do seu filho, mostra essa determinação de ir para além das dores e aparências, enquanto as mulheres alegóricas funcionam também como Deusas da Natureza e Musas, de certo modo oferecendo a Antero de Quentl algo do Amor suave e da confiança psíquica dialogante, vivenciados com as jovens tão apaixonada e idealmente cantadas nas suas Primaveras Românticas e, mais tarde com a mulher divorciada que conhecera e pela qual se apaixonara  nas termas francesas de Bellevue. 
Como que numa compensação simbólica, já que com a idade elas jovens amigas deram lugar em Antero mais à Fantasia, à Poesia, à Irmã Morte, ao Não Ser e Noite Primordial, ainda que as crianças adoptivas e algumas amizades lhe permitissem ainda afectos amorosos...
Há algo da Grécia sagrada neste recanto açoriano, pois Antero de Quental emerge como um Hermes, uma coluna entre o Céu (bem enriquecido pelas nuvens), e a Terra (fértil), no meio das ideias-forças de dois dos seus imortais sonetos, apoiado ou alimentado vibratoriamente por duas mulheres alegóricas, de algum modo lembrando não só as que mais amou em jovem, ou as duas filhas de Germano Meireles que adoptara e educara, mas também o amor que as almas aqui peregrinantes, ou dos seus livros, vida e obra, lhe transmitem, mais ou menos inconscientemente. Ou mesmo, que cada poesia sua (e no monumento estão dois sonetos) foi-lhe e é uma psyche, uma anima, uma mulher...
 Apreciemos a forte e esforçada expressão que o poderoso escultor Canto da Maia conseguiu infundir à terracota e pó da vida, tornada depois bronze, insuflando-lhe esta força de determinação que irradia de Antero e se comunica a nós dos "olhos abertos", os físicos, e do olho espiritual, bem marcado pelos riscos verticais na raiz do nariz, ainda que alguma preocupação pareça desprender-se do rito esforçado e das sobrancelhas contraídas. 
Canto da Maia terá composto a sua evocação mágica de Antero  sabendo de antemão os sonetos que o rodeariam, mas fê-lo por si mesmo e com ele mesmo, lendo e respirando-o e assim a magia do génio perpassa e transmite-se-nos...
Chegar aos dois sonetos escolhidos, implicou sem dúvida uma escolha grave tendo em conta a riqueza da totalidade deles. Certamente cada um de nós faria a sua escolha própria, embora estes, e sobretudo o Solemnia Verba, sejam certamente dos mais profundos e desvendadores. E Antero, se tivesse ele voz audível entre nós, quais diria que queria afixados mais perenemente ao seu lado? Ou será que preferiria alguns extractos das suas cartas?
O Solemnia Verba (acerca do qual gravei um vídeo durante a escrita deste texto, publicado também hoje no blogue)  parece-me bem que seria um dos escolhidos por ele.
São poemas poderosos, o da Contemplação algo trágico, pois nele Antero espelha a sua tristeza por sentir vácuo, sombra e dor nos mundos, e apenas  pressentir outro fim e outra luz nas coisas, talvez  graças a uma dupla circulação anímica: a da sua empatia e compaixão com o sofrimentos dos outros, e por outro lado a sua elevação e ligação às essências, ideias e espíritos que ele, subtilmente intui; embora neste caso talvez algo apenas no pensamento e  mas não na vera visão espiritual, intuindo....
Já o soneto Solemnia Verba, Palavras Solenes, é dos mais conseguidos, é dos que mais sintetiza a vida de Antero: pela dor, a luta, o estudo, a aspiração e  a coragem, conseguir avançar e chegar a um cimo da montanha da vida e ver a luz nascente.
Poderemos dizer então que acompanha bem a escultura tão conseguida de Canto da Maia. E nela o clarão que vemos reflectido na testa de Antero poderá ser visto como a Luz e  o Amor que ele pressente ou vê intuitivamente,  é o Sol do Amor Primordial e Divino.
 Um súbito olhar para as Nuvens e Céus de Portugal, sobre o jardim de  Ponta Delgada, mostra-nos uma formação sugestiva, luminosa, que nos expande para os mundo subtis e espirituais onde Antero de Quental se encontra, quem sabe tendo algo a ver com a forma semi-transparente das nuvens que parece ecoar ou ressoar psico-morficamente este nosso culto a ele e à Divindade...
 O determinado Antero de Quental, o discípulo de Alexandre Herculano, que neste soneto o glosa de certo modo, inicia-nos neste falar com o coração, para que ele ou nosso ser se olhe auto-conhecendo e ganhe forças para concluir quem é, ao  que aspira, como está o Amor nele, auto-conhecimento este que Antero tão bem ensinou a vários dos seus amigos e particularmente a Fernando Leal, como algumas das cartas conservadas perpetuam: provoque essa voz da consciência, oiça-a no fundo seu coração, sinta a vontade do Bem que nos anima, siga-a... 
A Antero de Quental, a nossa gratidão pela sua sofrida peregrinação.
A Antero de Quental, e ao caminho de Justiça e  Liberdade,  Verdade e  Amor a que ele aspirou e se dedicou, a nossa adesão e identificação...
A Antero de Quental, desta altura temporal e vibratória da evolução histórica da Humanidade, pesem todos os constrangimentos e violências a que assistimos,  neste dia 1-XI-2018, o nosso empenhamento de continuarmos a luta pela Luz e o Amor que como ele, pan-psíquico, vemos e sentimos nos cimos interiores da alma e do Universo e na essência íntima de cada ser, esforçando-nos por realizar e partilhar mais o Amor e Fonte Divina que subjaz, abençoa e une todas as coisas e seres...

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