quinta-feira, 26 de abril de 2018

Amor e Timidez em Antero de Quental, por Rui Galvão de Carvalho. Antero enamorado ou antes um casto Galaaz?

 Rui Galvão de Carvalho, açoriano (Rabo de Peixe, 3-XI-1903 e Ponta Delgada, 29-V-1991), professor liceal de filosofia, ensaísta e poeta,  notabilizou-se pela grande admiração e dedicação a Antero de Quental, e perseverante e profícua divulgção, tendo tal amor despertado quando estudava em Coimbra e por influxo do seu mestre Joaquim de Carvalho, este sendo um dos mais valiosos estudiosos de Antero de Quental.
É vasta a sua bibliografia, nomeadamente a anteriana, conforme se pode consultar na razoável página que lhe é dedicada na Wikipédia, à qual acrescentei dois títulos e uma correcção.
 (1933) Nota breve sobre a timidez de Antero. Porto, Revista Portucale, vol. VI, nº 35.
(1933) — Três Ensaios sobre Antero de Quental. Coimbra, Imp. da Universidade;
(1934) — Meditação Sobre a Vida e a Morte de Antero. Sep. de O Distrito, Ponta Delgada;
(1949) — Antero de Quental e a Mulher. Ensaio Breve de Interpretação Psicológico­-Literária. Lisboa, Ed. de Álvaro Pinto (Ocidente);
(1950) — Antero Vivo. Ensaios. Lisboa, Ed. de Álvaro Pinto (Ocidente);
(1950) — Primazia do Espírito e Agremiações Culturais. Ponta Delgada, Tip. do Correio dos Açores;
(1957) — Mulher na Lírica de Antero. Sep. de Insulana;
(1961) — Cartas de Antero de Quental a Francisco Machado de Faria e Maia. Lisboa, Delfos;
(1962) — Ordenação Cronológica dos «Sonetos Completos» de Antero de Quental. Sep. de Atlântida. Órgão do Instituto Açoriano de Cultura, Angra do Heroísmo;
(1965) — O génio poético de AnteroBrotéria, Lisboa, vol. 81, n.º 3 (Setembro de 1965): pp. 175 seg.
(1966) As raízes bocageanas dos Sonetos de Antero de Quental. Rev. Gil Vicente, Lisboa, Vol. XVII 2ª s. nºs 11e 12. 1966.
(1980) — Colectânea de Estudos Anterianos. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura;
(1983) — Antologia Poética de Antero de Quental. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura;
(1984) — O Açorianismo de Antero de Quental. Sep. da Biblos, Coimbra;
(1985) — Antero de Quental: Novos Ensaios. Vila Franca do Campo, Ed. Ilha Nova;
(1989) — Antero de Quental e a Música. Câmara Municipal da Horta. *** E provavelmente outros textos terá escrito e publicado, dispersos por jornais ou revistas terá também trabalhado Antero.

  Iremos abordar o seu primeiro ensaio, publicado na abrangente revista portuense Portucale, quando tinha apenas 31 anos, no qual aborda o tema do amor, da sexualidade e da timidez de Antero de Quental e manifesta uma certa mitificação, bem natural para um jovem bondoso, idealista e formado no Catolicismo e no Integralismo de António Sardinha, visionando-o como um Galaaz, algo que em certos aspectos cavaleirescos de demanda do Graal do Ideal e da Verdade certamente tinha, e gera algumas afirmações senão discutíveis pelo menos boas para nos interrogarmos sobre Antero de Quental, a Mulher e o Amor, sobretudo na vida dele, embora o tema seja vasto e as linhas aqui necessariamente breves...
Do artigo, reproduzido, transcrevemos as afirmações mais importantes, nomeadamente logo de início, ao rebater a ideia em parte lançada pelo médico Sousa Martins de se «considerar o poeta como um misógino, como um inimigo sexual das mulheres», caracterização esta que Natália Correia criticou e reenviou para o próprio Sousa Martins, pois este é que seria o misógeno, o desequilibrado.  
Que diz então Rui Galvão de Carvalho: «É um conceito erradíssimo este, tanto mais que, como já afirmamos, a paixão de Antero por a mulher foi um facto real e, em toda a sua vida de peregrino do Amor chama acesa e sempre irradiante, facto que em parte pode até explicar a tragédia íntima do homem que a lenda santificou, do poeta que melhor cantou a Dor humana, do filósofo que mais intensamente viveu a angústia metafísica de Jouffroy, mas que, como o irónico Voltaire, "nos deixou, a todos, o exemplo da tolerância"(Lanson)». 
De realçar as expressões acertadas e belas que sublinhamos, e as referências a Théodore Simon Joufroy (1796-1842, discípulo de Victor Cousin), filósofo e professor, que morre curiosamente uns meses antes de Antero de Quental, com uma obra valiosa sobre a ética e a moral, a filosofia escocesa e os fins últimos da Humanidade, e a Gustave Lanson (1857-1934), historiador sociológico da literatura.
 
 E a dado passo, no desenvolvimento da sua teoria ou visão anteriana, apoiado em Freud e em Gregório Marañón, conclui Galvão de Carvalho: «varão perfeito, másculo, a sua pudicidade derivava de um excesso de virilidade; a sua reserva traduzia-se numa sublimação sexual segundo a terminologia de Freud; enfim: a sua timidez «se deve a uma situação de superioridade do instinto, a uma diferenciação exagerada do mesmo; a um verdadeiro complexo de superioridade sexual»...
Para quem não conheceu pessoalmente Antero de Quental, que é o caso de Rui Galvão de Carvalho e de todos nós, conseguirmos discernir plenamente as fontes da timidez ou pudor de Antero é certamente difícil e apenas podemos tentar apresentar alguns factores ou aspectos, sem que talvez haja sequer grande razão em se fazer tal, por respeito à intimidade que ele bem prezava e logo preservava
O que é inato, como genética, temperamento ou tendência, e o que se recebe da educação e ambiente familiar, serão factores determinantes, e certamente  em Antero o seu grande amor e ligação à mãe, bem assinalada em cartas e em especial quando ela morreu, foi talvez um factor amplificador de maior discrição, reserva e pudor quanto a falar da sua sexualidade. Mas certamente antes de tudo se deva considerar o seu génio, a sua natureza de filósofo e místico, a sua individualidade própria e livre e pouco desejosa de ser devassada e limitada, como ao longo da vida frequentemente manifestou ou exprimiu, o que o retrairia mais.
A tal devemos acrescentar as suas leituras e reflexões, espelhadas por exemplo no juvenil e algo romântico primeiro ensaio publicado na revista conimbricense Prelúdios Literários, nº 13, em 1859, A Educação das Mulheres, onde os seus verdes e idealistas 17 anos, mesmo com o afluxo de ideias  colhidas em Coimbra (destacando-se neste texto o moderado e platónico idealista Louis Aimé Martin, discípulo do sonhador Bernardin de Saint-Pierre e por este de Rousseau), mostram a afinidade e a opção romântica e cavaleiresca de ver a mulher como ser frágil a ser protegido. 
Mas já noutros passos manifesta uma percepção não paternalista «pois tais como somos, é a mulher que assim nos faz», ou mesmo algo tântrica ou shakta, ou seja, de culto da energia feminina: «Bebemos, com efeito, nos seios da mãe, nos olhos da amante, nos braços da esposa todas as virtudes e os vícios, com que depois surgimos no mundo: sendo a mulher o misterioso guia e mestre da nossa educação moral, em todas as fases da nossa vida, claro é, o que formos no bem ou no mal, a ela o devemos», referindo ainda numa expressão (trabalhada depois na carta a Cirilo Machado, já por nós publicada) psico-energética operativa "a influência deste magnetismo sobre a alma do homem".
Sabemos pouco dos seus amores, e pouco também passou da sua vida amorosa para as centenas de cartas que trocou com amigos, certamente  por respeito com as mulheres com quem mais amor sentiu, e a fim de preservar tal intimidade de apreciações e julgamentos exteriores de então e quem sabe até dos futuros...
 Sabermos exactamente o grau de valorização da intimidade afectiva, nos namoros, e nas comunhões amorosas e sexuais, que Antero  de Quental teve  é então difícil mas podemos crer que desde sempre muita da sua energia psicosomática foi direccionada simultaneamente para a realização de objectivos filosóficos e artistas, embora na sua adolescência e em certas épocas da vida o seu amor e ardor, romantismo e idealidade,  estivessem muito activos  e gerando, para além dos dois ensaios de defesa e valorização da mulher, belos poemas e sentimentos, diálogos e vivências, namoros e desejos.
Infelizmente no seu riquíssimo epistolário só encontramos breves  alusões a tal vida afectiva, já que conforme confessava a Oliveira Martins, em Fevereiro de 1871, em relação a uma desilusão amorosa, «duas vezes tentei já escrever-lhe, sempre se me negou a escrever a pena o que verbalmente não me custaria a dizer. Desculpe-me isto, que é uma das repugnâncias instintivas, de que a gente não pode dar explicação, mas que são invencíveis, e que você apreciará». E teríamos neste não escrever, não confessar a alguém tido como muito amigo, uma posição de  prudência, na preservação da intimidade afectiva, seja pelo sagrado íntimo amoroso que sentia, a dois e pelos dois, seja face a opiniões e julgamentos de outras pessoas, que sabemos serem frequentemente críticos ou maldizentes.  
Sabe-se, mais ou menos ao certo, que para além das aventuras normais de estudantes universitários conimbricenses, Antero de Quental sentiu o amor mais intensamente por três vezes: a primeira, por quem foi a sua Beatriz de adolescente, uma jovem coimbrã e casada e a quem dedicou o belo poema Beatrice, e sobre a qual escreverá, diferenciando o amor, os sentimentos e a paixão, a António de Azevedo Castelo Branco. a 14-III-1866, quando partia para os Açores; «fujo a um amor sem futuro que já me tem levantado muitos tumultos de sentimentos para que não tema que em breve chegasse às alturas tempestuosas da paixão - e de paixão inútil».
 Maria  Ana Porto Carrero, numa fotografia da colecção de Alexandre Ramires e partilhada por Ana Almeida Martins na sua incontornável Fotobiografia. Avisado esteve Antero em admitir que talvez não fosse mesmo a sua alma-gémea...
Uma segunda,  a M. C.,  a quem dedica quatro sonetos, e que serão duas das iniciais de Maria Ana Porto Carrero, e com quem não sentiu ousadia de querer assumir as limitações do casamento mas que amava e que ela, com a sua partida para França durante quase um ano, acabou por aceitar o namoro e  casar-se mesmo em 1868 com o  conterrâneo e condiscípulo de Antero na Universidade,  Filomeno da Câmara de Melo Cabral.
A terceira, quase dez anos mais tarde, foi uma senhora nobre e bem culta, francesa, Clotilde Seillière, então em processo de divórcio, que Antero conheceu em França quando esteve em 1877-78 nos arredores de Paris em tratamentos de hidroterapia sob orientação do famoso especialista de doenças nervosas Charcot, (1825-1893). 
Foram três encontros e conhecimentos de mulheres e almas afins que, nas condições limitativas em que se apresentaram, vivenciou mais como amores que foram  discernidos rapidamente com poucas hipóteses de avançarem, de se aprofundarem e estabilizarem, fazendo-o sofrer, dizendo mesmo do terceiro relacionamento, talvez o com mais possibilidades ou afinidades e certamente o mais aprofundado e maduro, «que eu sofria tanto que estava estonteado», afirmando mais tarde Oliveira Martins, mas certamente exagerando, que ele teria pensado em suicidar-se.
Será que desde 1874 com a morte do pai e o aparecimento das suas maleitas psico-somáticas, ou em 1876 quando morre a mãe, e no fim do ano adopta as crianças de Germano Meireles e pouco depois a mãe delas morre, ou sobretudo desde 1880, quando abandona a paixão-amizade com a baronesa Clotilde Seillière,  que diminuiu bastante o seu desejo esperançoso pela mulher? 
Ou será ainda mais tarde, apenas com o envelhecimento e enfraquecimento psico-somático derivado das suas doenças e, sobretudo da desilusão, que a chama do seu amor fenece? Ou tal nunca desapareceu, apenas a sua desilusão da vida e enfraquecimento psico-somático não o galvanizaram mais à esperança do Amor e o levaram por fim à desistência da pesada vida terrena, mas que as asas de Cupido sempre aligeiram e que certamente o teriam ajudado a vencer as circunstancialidades adversas?
Um pouco mais documentados com esta breve visualização da trajectória amorosa do nosso poeta e espiritual, podemos interrogar-nos então: Antero de Quental era algo misógino, e não num sentido de inimigo da mulher (como queria o positivista Sousa Martins), mas de ser  interiorizado, casto e sublimando-se, quase desde o início da sua vida, como nos quer fazer crer Rui Galvão de Carvalho, ou foi-se tornando tal com o tempo, com as suas dores, dificuldades, desilusões?  Ou nunca o foi, e apenas tinha pela sua grande demanda de verdade e de coerência e pela sua natureza algo de solitário ou mesmo monge uma menor capacidade e  apetência de envolvimento afectivo e social duradouro?
Anote-se que Galvão de Carvalho, quando afirma que Antero de Quental sempre foi casto, não quer dizer com isto que ele negasse a sexualidade, escrevendo mesmo com certeiro discernimento que: «Antero amou, amou apaixonadamente, paixão que lhe fez vibrar os nervos, aquecer mais o sangue, palpitar mais fortemente o coração, tornar mais rica a imaginação irrequieta: sintomas naturais da sua virilidade requintada, do seu instinto sexual, e, ao mesmo tempo, causas da sua tragédia íntima, do drama psicológico, das suas crises sentimentais.
Vemos então em Antero: manifesta timidez, escrupuloso recato, severa pudicidade. 
Conservou-se ele por esse facto sempre casto? Incontestavelmente.
Antero, na verdade, procurou conservar-se casto, - o que não quer dizer que ele não tivesse rendido culto à Carne e ao Prazer, mas esse culto fora passageiro. 
Os homens superiores, eminentemente superior, são castos, cultivam a flor da castidade, para equilíbrio dos sentidos, pureza da alma e higiene do espírito.
O genial florentino Leonardo Vinci escreveu algures:"Aquele que não refreia a voluptuosidade confunde-se com os animais"» 
 
Deixemos então, após este seu mais aberto mas também sempre sublimante passo do seu ensaio, Rui Galvão de Carvalho e admitamos que com a sua maturação no tempo  Antero de Quental deixou-se revestir de uma maior aura de asceta e de sofrimento e, como diminuía a vitalidade psico-somática, terá sentido menos desejo e  esperança de relacionamentos ou uniões, os quais potenciam ou animam tanto a afectividade e a sexualidade como a própria sobrevivência...
Assim, quando regressado ao torrão natal se viu deprimido pelo ambiente atmosférico, afastado das duas pupilas, Beatriz e Albertina (certamente quem mais terá sofrido...), e a ter  de voltar ao corrupto ambiente de Lisboa, desanimou e lançou-se ao mar alto que envolvia a sua ilha, onde não se conseguira inserir, provavelmente convencido, orgânica e psiquicamente,  de que a sua missão na Terra terminara.
 E assim debaixo da âncora da Esperança, junto à cerca do convento, "samuraicamente", nesse anoitecer de 1891, apenas com 49 anos de desabrochamento espiritual, Antero de Quental abraçou e foi levado pela "casta" irmã Morte que tanto poetizara e namorara.
Com que grau de auto-consciência, a cavalo da sua alma, Amor vencendo Mors, estaria ele, qual cavaleiro Galaaz rumo ao ideal?
Poderia ele ter sido mais abraçado e enlaçado amorosamente na vida, ou o seu percurso e quase destino de mártir do livre pensamento da época "cristificava-o" daquela feição  e hora necessariamente?
 
Muita Luz e Amor Divinos em Antero de Quental e em Rui Galvão de Carvalho!

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