quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Antero de Quental visto por Raul Brandão, em referências das suas "Memórias".

Na capa, por Tagarro,  do III vol. das Memórias, impresso em 1933 na Seara Nova.
        Raul Brandão (1867-1930), escritor, militar e jornalista portuense, que não menciona nas suas obras ter conhecido pessoalmente Antero Quental, embora em 1890 o pudesse ter escutado no Porto aquando das movimentações da Liga Patriótica do Norte (malograda "por falta de espírito público"), refere-o ao de leve numa passagem do 1º volume dos três das suas riquíssimas Memórias, nas quais evoca e descreve lúcida e penetrantemente a memória e o convívio com tantas personagens literárias, políticas e populares da sua época, nos seus aspectos pitorescos, valiosos e trágicos...
A 3ª edição do Vol. I das Memorias, impressa na Aillaud &Bertrand, Lisboa
A 2ª edição do vol. I das Memórias, impressa na Renascença Portuguesa, Porto.
     Numa nota pioneira de biblioterapia, Raul Brandão, a propósito do estado psíquico de escritores, no caso Fialho de Almeida, que por estados desventurados entram em frequências de leituras mais modestas, escreve: «G...., antigo companheiro de Fialho, sepultado hoje no fundo de uma biblioteca, diz assim a propósito da livraria do grande escritor (no Republica, 28-II-1915): "Eu chamo a estes livros as onze mil virgens. São apenas quatro mil volumes ou pouco mais, mas - vai surpreende-lo esta minúcia - estão aqui todos por abrir. Há aqui Balzac e Zola, Eça e Ibañez, os Goncourt e Ponson du Terrail. Fialho tinha muito Ponson na sua biblioteca. Esta literatura de costureiras e guarda-portões era para as grandes horas amarguradas".
Horas amarguradas e logo literatura cor-de-rosa para as costureiras, ou de facalhões e espadachins  para os guarda-portões (os antigos porteiros), os livros apropriados a fazerem subir o tónus psíquico desejado de quem os lia. 
Será caso para se perguntar se o estilo de leitura de muita gente modernamente significa também que estão amarguradas ou desorientadas e tem de se deixar guiar por enredos fictícios mas que lhes criam emoções e ansiedade?
                 
Prossigamos com o texto de Raul Brandão, na parte em que nomeia Antero de Quental e voltando a transcrever as duas últimas linhas:

«Fialho tinha muito Ponson na sua biblioteca. Esta literatura de costureiras e guarda-portões era para as grandes horas amarguradas.
Era. A ele e a outros grandes espíritos basta-lhes o próprio drama. Antero, nos dias aziagos de Vila do Conde, só lia Gaborieu.  Para tragédia chegava-lhe a sua.»
                   
Étienne
Émille Gaboriau (1832-1873), e anote-se que na 3ª edição deste 2º volume das Memórias a gralha no seu nome foi corrigida, é considerado mesmo o pai do romance policial francês, certamente um génio literário com os seus cultores aperfeiçoados na arte de criar suspense e de leitores interessados nesse género de sensações. E é curioso que o genial Fernando Pessoa, mesmo no fim da vida, continuava a ser um leitor adepto de romances policiais. Por descargo de consciência direi que é algo que  sou incapaz de ler, ou seja, de perder tempo com tal temática, mas compreende-se em Fernando Pessoa já que escreveu alguns contos ou novelas policiais, um dos quais ainda está para sair a propósito do seu encontro com o mago e ocultista Alesteir Crowley, ainda que saibamos que o que se passou ao nível espiritual e iniciático de modo algum entra em tal brincadeira arquitectada com Ferreira Gomes, outro adepto dos policiais, e aguarda a hora, se é que ela chegará, para ser melhor compreendido e transmitido...
E Antero, será que lia mesmo policiais, um homem com uma demanda de Justiça, de Verdade e de Absoluto tremenda, absorvente?
Não creio. Quem vogara em altas teorias sobre as causas da decadência de Portugal e lutara pela revolução e por um socialismo humano que melhorasse as condições dos portugueses e que desde cedo corajosamente se lançara em altas cavalarias desafiantes dos poderes estabelecidos, seja universitários, literários, políticos, conceptuais, religiosos ou científicos, iria empregar o seu tempo em policiais, correspondentes  hoje de certo modo ainda aos romances pseudo-históricos ou de suspense best-sellers, para não falarmos de quem lê os jornais da bola ou comenta doutoralmente tal actividade, frequentemente numa alienação grande face a um mundo a arder e à Humanidade a querer evoluir e libertar-se de tanta ignorância e ilusão, opressão e violência, que infelizmente parece até aumentar?
                                           
Se consultarmos o catálogo da substancialmente valiosa mas quantitativamente modesta (apenas 758 títulos) livraria de Antero, legada à Biblioteca Pública de Ponta Delgada, não encontramos contudo sinais das obras de Étienne Gabirau, nem de Ponson du Terrail, nem de qualquer literatura cor de rosa ou policial.
Será então que Raul Brandão ouviu dizer, e enfabula tragicamente um pouco, a condizer com o que apresenta como os "dias aziagos" de Vila de Conde, apresentados até, pelo contrário, nos nossos dias pela maior especialista e devota de Antero, Ana Maria Almeida Martins, como "a década dourada" de Vila do Conde, na qual este entrou numa nova fase da sua vida, na qual até fisicamente estava bem mais saudável, na companhia (desde 1880, mas em Vila Conde apenas a partir de Setembro de 1881) das duas alminhas filhas e órfãs de seu grande amigo Germano Meireles, quais pupilas andorinhas no beirado de uma alta torre?
Cremos que muito provavelmente Antero não usou o seu "escasso" tempo em leituras policiais...
Mas para não ficarmos com uma impressão algo de dúvida em relação  ao puro e insuspeitado existencialista Raul Brandão, grande leitor dos escritores russos insuperável na autenticidade e sensibilidade das suas descrições da vida dos humildes, dos pescadores, dos camponeses, manuseemos o 2º volume das Memórias, o qual na 3ª edição (da Aillaud & Bertrand e datada de 1925, tal como a 1ª) contém um índice alfabético onde Antero de Quental surge por quatro vezes nomeado, três delas no capítulo intitulado Os Últimos dias de Guerra Junqueiro.
E o que nos diz Raul Brandão nas comparações constantes que faz, a partir de um bom conhecimento psicológico de Junqueiro ou no caso também de Eça de Queirós e de outros, é bem valioso: «A sua geração é decerto a maior geração literária que tem nascido em Portugal, e no entanto só talvez Antero, entre todos eles, se conserve intacto... É o único que nos obriga a falar mais baixo. Rodeiam-no ainda as sombras desmedidas com que arcou na existência e que o levaram à morte. Ao próprio Eça, falta não sei o quê que me irrita. Não é o talento que se adivinha e põe de pé a própria vida (...) Ele foi janota e a vida é desalinhada e feroz. Ele foi irónico e a vida não é irónica (...)»
Esta aproximação a Antero no modo típico e trágico de Raul Brandão de valorizar as sombras e as dores, o húmus e os humildes, agarra bem a alma dantesca de Antero, vinte tal anos depois do seu suicídio ainda arca ou lamparina mágica poderosa contendo, envolta e emanando o génio dos grandes mistérios e sombras da existência. 
Antero de Quental ainda hoje passa diante de nós em silêncio, olhar no horizonte, como que encapuçado no mistério da Vida e do Além causando o silêncio em nós, ou como diz Raul Brandão, obrigando-nos a falar mais baixo. Quem sabe se por ter silenciado o seu verbo ou palavra antes de tempo....
Depois de caracterizar em seguida Guerra Junqueiro, que elogia bastante, embora notando que «há na sua vida uma contradição. Iluminou-o uma luz artificial. Não conseguiu ser santo. A certa altura da existência refez-se de alto a abaixo, mas dentro do prédio nem por isso os moradores se entenderam melhor; Deus e o Diabo não puderam viver paredes meias sem atritos (...) Faltou-lhe talvez alguma coisa no seu génio. O poder verbal é admirável, mas sente-se a ausência de intimidade e ternura. Amesquinhou-o também a política», umas linhas mais à frente surge de novo Antero de Quental, numa referência comparativa aos principais membros do Grupo dos Cinco, ou do Cenáculo: «O Antero estava muito alto, o Oliveira Martins distante e o Eça era irónico. Junqueiro viveu connosco. Todos assistimos à sua vida em todas as fases; conhecemos-lhe todas as suas aspirações».
                            
Juntamos a famosa fotografia do grupo do Cenáculo ou dos Cinco, em 1884 e, como legendas diria, da esquerda nossa para a direita:
Eça, ao canto, algo cansado das ironias; Oliveira Martins, firme e calmo na sua cordialidade e escrita; Antero, místico e sem chapéu, olhando de frente a morte e o futuro;  Ortigão, elegante e social; Junqueiro, revolucionário satírico e desafiante.
Ressalve-se ao terminar que, dada a diferença de idades, Antero de Quental partia quando Raul Brandão começava a sua carreira literária e que por isso, apesar das  afinidades de dois seres bondosos na busca dos sentidos da Vida, não se encontraram, mas é bem profunda a imagem que nos dá dele e nela nos podemos abismar ou elevar, na comunhão no campo unificado ou corpo místico da Tradição Espiritual Portuguesa: 
- "O Antero estava muito alto"....

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