terça-feira, 4 de julho de 2017

"Evocando Fernando Pessoa", por Francisco Peixoto de Bourbon. A tertúlia do café Montanha.

    Conheci ainda bem Francisco Peixoto Bourbon (1908-1992), um dos admiradores e amigos de Fernando Pessoa que se reuniam, no café lisboeta Montanha, à volta do genial poeta nos últimos seis anos de sua vida terrena. Natural de Celorico de Basto, engenheiro agrónomo, amigo e da geração do meu pai, vivia junto a Fermil, terra natal de meu pai, e onde me acolheu ainda nos anos 80/90 para animados diálogos. 
Casa de Peixoto Bourbon, em Fermil.
Recentemente numa reunião de família em Frades, Póvoa de Lanhoso, estive com a sua filha Mafalda, agrónoma e professora, com a qual tenho mantido alguns contactos ao longo dos anos e que me ofereceu a recente compilação que a Câmara de Estremoz fez das crónicas escritas por Peixoto Bourbon para o jornal  Eco de Estremoz nos anos de 1972-73 e nas quais partilhou, sob o título Evocando Fernando Pessoa, e com muito sucesso («no café Aviz era aguardado com muita ansiedade», com elogios de Vitorino Nemésio, P. Agostinho Veloso e Rodrigues Cavalheiro) muitas memórias curiosas e valiosas sobre Fernando Pessoa: as que um jovem de 22 anos a formar-se como agrónomo em Lisboa, monárquico e integralista, sincero e com grandes aspirações no seu amor por Portugal conseguiu sentir e admirar, desentranhar e rememorar tanto do amigo e mestre próximo como do  imenso novelo pessoano. A apresentação bem contextualizadora é do José Barreto, um bom investigador de vários aspectos de Fernando Pessoa.
Foi por vários jornais regionais que Francisco Peixoto Bourbon derramou abnegada e beneditinamente as suas memórias,  numa autêntica cruzada pessoana, e ao longo de alguns anos na década de  oitenta e noventa em que nos correspondemos também fui recebendo fotocópias das suas últimas publicações, das quais menciono, tanto mais que se desconhece tal colaboração em certos casos, o Comércio de Gaia,  o Comércio de Gondomar, o Notícias de Guimarães, a Cidade de Tomar, o Monte Farinha  e a Vanguarda, neste elogiando-me, tanto mais que lhe passara alguns textos, inéditos, que fotocopiava no espólio da Biblioteca Nacional, no caso um poema a Don Miguel Primo de Rivera, datado de 13-XI-1931, escrevendo mesmo, certamente com o exagero da sua grande generosidade, «o Dr. Pedro Teixeira da Mota, que tem sido dentre os estudiosos pessoanos quem mais tem contribuído para apresentar uma imagem verídica e exacta do que foi o nosso genial poeta».
Não será agora a altura de partilhar o que ele me disse nas cartas ou conversas, ou algo do que foi dando à luz nos jornais, mas deveremos antes divulgar esta valiosa publicação recente das Edições Colibri, com um preâmbulo de Mateus Maçaneiro e uma sóbria apresentação contextualizante do amigo José Barreto, muito bom conhecedor de muitas das facetas de Fernando Pessoa e que já me assinalara a sua publicação.
Nas trinta e seis crónicas, de Dezembro de 1972 a Dezembro de 1973, há muitas informações, e considerações, verdadeiramente interessantes e nas quais podemos destacar os participantes nessas tertúlias do café Montanha, o aspecto físico e vestuário, alimentação e bebida, hábitos e particularidades de Fernando Pessoa, bem como ainda as expressões mais invulgares utilizadas, as admirações, amizades e inimizades, a maneira de ser e falar, os seus desejos e frustrações, a política, a ideologia e a espiritualidade. 
Francisco Peixoto Bourbon cultivava muito as amizades, era sinceramente um ser bom e generoso e foi ele mesmo que me introduziu a outros amigos de Fernando Pessoa, tais como Moutinho de Almeida e o Manuel Menezes de Vasconcelos, e transmite muito bem nas suas evocações o calor humano que circulava entre eles, realçando bastante a falta do meio condigno do génio de Fernando Pessoa, embora a tertúlia do Montanha fosse quase um refúgio de consagração e onde se podia dialogar com franca troca de ideias, como o jovem estudante de agronomia logo experimentou, tornando-se como que o benjamim acalentado da tertúlia, da qual nomeia como participantes o eng. Rogério Caldeira Santos (seria o maior admirador de Pessoa e posteriormente tentou infrutuosamente transformar o café Montanha num museu Fernando Pessoa), o dr. Manuel de Menezes Vasconcelos (um dos mais íntimos), o Marquês de Penafiel, Da Cunha Dias, o Joaquim Palhares, Victoriano Braga, o dr. Pedro Moreira, o Mário Saa, o Dr. Carlos Lobo de Oliveira, o eng. Pulido Garcia,  o Victoriano Braga, o Gualdino Gomes, o capitão Gastão de Melo de Matos,  e umas poucas vezes o António Botto e  o Almada Negreiros.
O seu aspecto algo triste é apontado: «era de estatura mediana, mais baixo do que alto, franzino, magro e de uma palidez verdadeiramente cadavérica. Vestia com a maior despretensiosidade possível e sempre o vi com fatos escuros (...) nunca o vi de laço, mas sempre de gravata preta (...) Apesar dos fatos estarem coçados, denotando intenso uso, o que sucedia também com as camisas, era de impecável asseio, sem uma nódoa, exibindo camisa impecável e imaculadamente brancas».
Há várias referências à  falta de meios em que vivia e que se reflectia no seu estado psíquico, alimentação, saúde, casamento e projectos do futuro. Quanto ao beber, embora tenha estado com ele apenas uma vez num almoço em que todos beberam muito, em Alcântara, reconhece que, embora seja falsa a ideia que ele se embriagava, o António Navarro lhe dissera por experiência própria que ele não falava, ou seja não respondia às pessoas, se estivesse algo tocado.
Dos seus desejos, surge mais de uma vez o de ter uma remuneração e uma estabilidade de vida que lhe permitissem dedicar-se mais plenamente à sua criatividade e como em 1930 o facto de não ter sido provido do lugar vago de bibliotecário em Cascais ao qual concorrera fora uma enorme frustração.  Também a Ditadura Militar, instaurada a 28-V-1926 («política mesquinha e destituída de interesse»), o Estado Novo e Salazar propagandeados pelo seu  S. Paulo, o antigo amigo António Ferro, o crescimento da Censura, o ataque ideológico de que foi vítima aquando da polémica da proibição das Sociedades Secretas, sem poder responder, surgem com fontes de frustração bem expressa num diálogo curto: «Mas quem nos diz que não estamos já vivendo já a hora do Quinto Império? Fernando Pessoa deu uma das suas gargalhadas tão características e inconfundíveis e disse: - Tire-se disso;  a hora é, sim, de autêntico despaupério».
Realcemos nas descrições dadas por Peixoto Bourbon o seu excelente acolhimento  da palavra e verbo de Fernando Pessoa e que compensam um pouco o trauma nacional de não ter sido gravada a sua voz, nomeadamente quando nos diz da «descontracção e naturalidade» com que que Pessoa respondia às questões ou diálogos mais difíceis, ou ainda como «falava com grande serenidade, desprendido e sempre em tom baixo. Por vezes dava a impressão de quase não mover os lábios. Nunca caía em contradições e focava os elementos os elementos essenciais de um problema»,  ou ainda «falava baixo, e, quando estava mais fluente e inspirado, a sua voz tomava aspectos de melopeia e melodia de um murmúrio, que não traduziam moleza nem eram, tão pouco, a expressão de um temperamento débil. Por vezes, é certo, dava a nítida impressão de estar muito cansado, como se houvesse regressado de uma longa viagem  ou tivesse passado noites em claro de dura vigília. Mas, mesmo nesses momentos de maior depressão, tinha grande sedução e como que um encanto misterioso. Acresce que não raro conseguia sintetizar em muito poucas e sóbrias palavras pensamentos por vezes bem complexos. E sentia-se que o fazia com dedo de mestre e com uma segurança que só o génio permite executar. E não o realizava esforçando-se, mas de forma natural e espontânea. Sentia-se que as suas fulgurações, que nos deixavam deslumbrados, não eram obra de longa maturação nem de uma incubação sem fim».
Das pessoas que ele admirava ou gostava refere Sidónio Pais (tendo participado nos anos 1919-20 com o jornal Acção e o sentido e profundo poema À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais), P. António Vieira, Mário de Sá Carneiro (o seu melhor ou mais afim amigo), Rocha Martins, António Botto, António Sérgio [sic] e Gaspar Simões.
Dos que ele não gostava, para além dos famigerados políticos Afonso Costa, António José de Almeida e Brito Camacho, encontramos Teófilo Braga, Joaquim Manso, João de Barros, Afonso Lopes Vieira, Álvaro Maia, Alfredo Pimenta, António Sardinha, Pedro Teotónio Pereira, e António Ferro e Alfredo Guisado, estes dois desde o episódio do salto de um eléctrico (pensando que o estrondo e o clarão de uma curto circuito era um atentado) do assustado Afonso da Costa, em 3-VI-1915, bem troçado por Fernando Pessoa dois dias depois em carta para o Jornal A Capital em resposta a menções do futurismo da revista Orpheu «seria de mau gosto repudiar ligações com o futurismo numa hora tão deliciosamente mecânica em que a própria Providência Divina se serve dos carros eléctricos para os seus altos ensinamentos», escrito do qual esses dois co-participantes do Orpheu se dissociaram. Escusado será dizer que Fernando Pessoa ainda escreveu uma outra carta bastante mais explicita quanto aos defeitos do chefe do Partido Democrático, muito conhecido como o "mata-frades", a qual o jornal não publicou. No fim da vida de Fernando Pessoa, de novo tal sucedeu, mas então quando estava a defender, em cartas aos jornais, a liberdade de pensamento e das Associações Secretas, em especial a Maçonaria perante um projecto de Lei opressivo do deputado José Cabral.
Dos que não gostavam dele, refere Guilherme Faria, Mário Beirão, Pedro Teotónio Pereira e os meios católicos e até neo-monárquicos ou integralistas, aos quais pertencia contudo o jovem Peixoto Bourbon. E assim o choque maior entre ele  e Fernando Pessoa deu-se quando este defendeu a Maçonaria e atacou alguns jornais e pensadores católicos nos últimos meses da sua vida, afastando-o da tertúlia e fazendo com que ambos estivessem mais só e menos luminosos nos últimos meses de vida terrena de Fernando Pessoa, algo de que Francisco Peixoto Bourbon confessa ter-se depois arrependido amargamente. 
Menciona três vezes o esoterismo ou ocultismo de Fernando Pessoa e a linha profética de Bandarra e Vieira, esta talvez ligada à sua boa fé: «um dos traços fundamentais de Fernando Pessoa era o de se sentir mal amado e ressentido e por uma série de razões, sendo a principal de se lhe impor uma espécie de vida para a qual sentia que nunca havia sido talhado. E daí o sucumbir ao peso de tantas incompreensões e egoísmos./ Mas, após o sucumbir e ter momentos de tão negra depressão, breve voltava a interessar-se pela vida e por vezes, por acontecimentos vários, por vezes pueris. Eu, por vezes, até ficava escandalizado por o ver absorvido por problemas e factos que considerava ridículos e de somenos importância. Convém a propósito referir que Fernando Pessoa  era dos seres de mais boa-fé que jamais conheci, dando pleno crédito a notícias sem qualquer fundamento». Será que poderemos admitir que Fernando Pessoa terá se deixado entusiasmar em parte pela crença, visão e a correnteza sebastianista e até do V Império, porque era uma pessoa de muita boa-fé ou ingénua?
Dos dados que Peixoto Bourbon nos transmite  acerca de Fernando Pessoa quais serão então os mais interessantes e menos conhecidos: o de ter estado ligado (com Simeão Pinto de Mesquita Magalhães) com a Junta Governativa do Reino, na movimentação de Paiva Couceiro e da Monarquia do Norte, o de ter tido em mira alguns lugares profissionais mas que se goraram, o de «procurar actuar no sentido de ocultar onde morava», o seu receio da velhice e da miséria, e o de frequentemente pedir mais 10 anos de vida para acabar a sua obra e dos quais só recebeu três, . 
O ter trabalhado como guarda-livros e correspondente comercial, quando apenas esta última faceta é reconhecida em geral (como anota José Barreto, pondo a outra em causa), embora os artigos que escreveu para os seis números da revista Comércio e Contabilidade, do seu cunhado Caetano Dias, em 1926, façam admitir ou deduzir tanto a sua preparação ou capacidade para em certas circunstâncias juntar as duas numa ou mesmo de o ter feito.
O sentir o que ele chamava de «revolta sagrada» perante o ter de sobreviver nesses trabalhos menores face ao génio que nele se manifestava ou o inspirava, e que o faziam descer do cerebral ao medular,  algo que o Livro do Desassossego bem transparece, tendo mesmo um dia dito: «A minha profissão não me ajuda, pois - não sei se compreendem - tenho trabalho dobrado, visto que só consigo após muito esforço que a inspiração surja e a medo, depois de completamente esvaziado durante o dia o entulho./ Um dia estava tão desesperado o cérebro das minhocas que caiu de borco em cima da mesa do Café e chorou. O Palhares e eu estávamos tão comovidos que nem palavras nos ocorreram para o consolar. E foi ele quem finalmente disse: - Se tivesse conseguido o lugar na Biblioteca, acabaria este meu tormento». E sabemos realmente como esse trágico erro em 1932 da recusa da atribuição do modesto mas seguro cargo de conservador ou bibliotecário no Museu Conde Castro Guimarães, em Cascais, acabou por ser fatal para Fernando Pessoa. 
São valiosas ainda algumas confissões feitas em conversas com Peixoto Bourbon, tais como: «só sabemos espezinhar no mesmo lamaçal e nada demandarmos horizontes novos e de percorrer novos trilhos  e ter novas visões», ou «eu bem me esforcei por espiritualizar a jovem República, por dar-lhe mesmo um fundamento filosófico...», ou ainda o seu empenho «em dotar o género humano de uma linguagem nova que ultrapasse em muito a linguagem actual, como esta última ultrapassa os sons dos animais». 
Alguns episódios da sua vida, as excursões botânicas com Caldeira Santos à Tapada da Ajuda,  o conteúdo dos seus bolsos (lápis pequeninos, cascas de castanhas assadas), a compra dum cofre, a visão da cara de Mário de Sá Carneiro num gato a morrer, uma projectada mas abortada visita a Fermil, a casa de Peixoto Bourbon, e em que iria encontrar-se com o pai dele e com Fernão Moura, descendente do lendário Magriço, a participação de Carlos Lobo de Oliveira na publicação da Mensagem são ainda bem vibrantes.
E ainda a defesa dos milagres, descrita «mais ou menos nestes termos»: «O restrito racionalismo, de vistas curtas e horizontes ultra-acanhado, negando a possibilidade de em dado momento surgir ou se dar o milagre, cai afinal, no domínio de um autêntico e bem pouco esclarecido preconceito. Há emanações do Além que de todo em todo não sabemos explicar e fenómenos que nos escapam. Devemos admitir o milagre, pois que pelo menos tem o raro condão e mérito de encantar a alma e impregnar o homem, profunda e definitivamente, da maior doçura e religiosidade», esta última frase certamente algo tingida pela aura mais religiosa que ocultista de Peixoto Bourbon.
Quando estava para ir encontrar-se com Peixoto Bourbon pai e Fernão Moura exprimiu a necessidade «que Portugal descubra as origens e as fontes e as verdades eternas  da sua grandeza. E teremos então o supra-Camões e o Quinto Império./ E é por isso que preciso de evocar, e em romagem no próprio local a presença dessas figuras tutelares que nos insuflam coragem na alma para o duro combate. E uma dessas excelsas figuras é a de Magriço».
Terminemos esta homenagem amiga e grata tanto a Francisco Peixoto Bourbon como a Fernando Pessoa, dois valiosos elos da Tradição Cultural e Espiritual Portuguesa, e aos que permitiram ser dado de novo à luz as crónicas para Estremoz  Evocando Fernando Pessoa, com mais duas transcrições das caracterizações dessa palavra e verbo que passou brilhantemente, a primeira sendo a sua afirmação, bem digna de se meditar e aprofundar, e sabemos como Fernando Pessoa trabalhou tal em alguns dos seus ensinamentos e mantras, de que «as palavras têm a sua temperatura e fazem mais parte de nós que as próprias fibras nervosas»... 
Évrard d'Espinques, c. 1475
E a segunda, expressa por Francisco Peixoto Bourbon, em parte como que numa paráfrase do iniciático dito de Jesus "onde dois ou três se reunirem em meu Nome eu estarei no meio deles", no qual se valoriza a convergência de pensamentos e almas e em que Nome significa tanto o Amor como o Pensamento ardente na demanda do Graal da Verdade: «A conversa com Fernando Pessoa, desde que se desenvolvesse com duas ou três pessoas, era sempre de maior interesse, não havendo nunca repetições monótonas, gestos inúteis, palavras insignificantes. Pelo contrário, era um desencadear ininterrupto de pensamentos de maior elevação».
Que os saibamos continuar, no Graal do Nome, Palavra, Verbo, Pensamento elevado,  Logos, Verdade, Comunhão, Unidade e Divindade... 

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