domingo, 11 de dezembro de 2016

"Deus e o Homem", por Filipe Furtado de Mendonça. 1950, Luanda. Um espiritualista desconhecido.

 
Com um símbolo da Unidade da Humanidade e da Divindade 
Filipe Furtado de Mendonça é um autor pouco conhecido, que imprimiu em 1950 na Tipografia Portugal, em Luanda, num in-8º de 23 páginas, uma conferência proferida sob o tema Deus e o Homem, na qual transmite a sua compreensão e entusiasmo pela sonhada melhoria evolutiva da Humanidade. Bem gostaríamos de saber a tiragem, se circulou por outras cidades angolanas e se o impacto nos que o leram e meditaram foi significativo...
"Ao snr. Arnaldo Gomes, com muita estima, o Filipe Furtado Mendonça, 21-2-1960, Luanda", reza a dedicatória do exemplar que possuo, e onde no prefácio o autor justifica a repercussão que teve a conferência por o assunto ser dos mais apaixonantes problemas que se põe «à consciência colectiva».
A obra procura questionar a relação existente entre a Divindade e a Humanidade e ainda se há uma continuidade de vida, embora sob este aspecto pouco ou nada disse, desenvolvendo porém bem o primeiro.
Passando em rápida revista a busca religiosa dos povos ao longo da História, considera que é Jesus, que Filipe Furtado de Mendonça imagina (erradamente) ter estado entre os 17 e os 30 a aprender no Egipto, Pérsia, Índia e Tibete, quem veio trazer a revelação do Amor, interpretando a frase "Eu e o Pai somos um", no sentido de que Jesus tinha a consciência perfeita da sua missão e de que só por Ele, como manifestação do Pai, a humanidade seria salva. 
Para realizarmos tal em nós, diz-nos, é preciso desconsiderarmos o falso eu sensorial e valorizarmos «o grande Eu Central Colectivo, Cristo», e «renunciarmos à vida ilusória e transitória dos sentidos, destruindo o falso conceitos de que somos seres independentes e distintos, o que nos traz a perpétua luta com o exterior. A verdade é que somos elos duma mesma cadeia, células do mesmo organismo, UM com o Espírito universal, no qual está a plenitude de tudo quando necessitamos. A crença em dois pares de opostos, o Bem e o Mal, só foi possível, porque os homens, separando-se da ideia divina, encaminharam os seus pensamentos e a sua acção, não no sentido universal, único verdadeiro, mas visando somente o interesse particular, originando, assim, a inversão das forças divinas, o que trouxe a desarmonia e o caos ao Mundo.»
E sendo verdadeira a consciência ou constatação de Furtado de Mendonça de que estamos todos interligados num todo, mas exagera, numa linha idealista de não dualidade, quando critica e nega que sejamos seres independentes e distintos pois, embora interligados, somos todos individuo distintos uns dos outros e a capacidade de sentirmos o outro tanto como a nós mesmos é raríssima, o que deveria ser bem mais natural e fácil se fossemos todos um só.
E podemos interrogar-nos, acerca da famosa injunção do mestre Jesus, «ama o próximo como a ti mesmo», 1º quem é o próximo, 2º se ele a expressou assim mesmo, ou se foi "cuida", ou "sente", ou "respeita"; e realce-se que há um progredir ou amadurcer nesta capacidade de sairmos das dualidades e egoísmo e vivermos mais a Unidade do Amor.
De qualquer modo o avanço histórico e consciencial da humanidade tem intensificado o sentido da individualidade das pessoas, até para resistirem até às massificações e manipulações que as tendem a dissolver em consumismos e partidarismos emotivos, sensoriais, básicos, como muito recentemente se tem observado dramaticamente.
Para Furtado de Mendonça, a perda da consciência da interdependência ou lei do Amor leva a « que em vez do amor divino, que redime, impera o ódio, em vez da alegria sã de conhecermos Deus [uma bela e valiosa frase], subsiste a dor e a confusão, em vez da paz, a guerra parece ser o prémio da nossa transgressão, em vez da fraternidade pura e da generosa solidariedade, constatamos, e somos vítimas, da exploração mais desenfreada e do mais agressivo indiferentismo».
Para comprovar a sua linha de pensamento de que o Ser Divino está manifestado na criação e em cada um de nós, como Deus de Amor e de Perfeição, Furtado de Mendonça cita em abono da presença divina no ser humano, ou como ele ainda diz «a universalidade do ser humano, eternamente ligado ao Ser Absoluto», três (reproduzidos nas fotografias) elevados pensamentos e poemas de um dos importantes escritores espiritualistas do séc. XX em Portugal, Teixeira de Pascoaes: «Nos Poetas Lusíadas escreveu o mestre insigne: - O homem é o mundo em viva síntese consciente. A Natureza, para o criar, serviu-se de todos os materiais. Somos um edifício construído, por fora, com toda a terra, e iluminado, por dentro com todas as estrelas. E nele vive silencioso e prisioneiro, o fantasma do seu arquitecto». Claro, que Pascoaes exprime-se na sua  vocação fantasmagórica, tão repetida e tantos poemas, mas apontando provavelmente e bem à necessidade de ouvirmos e libertarmos o nosso espírito interno.
E dos versos belos, reproduzimos esta parte:«Pelos meus olhos, uma estrela consciente/ Vê seu próprio fulgor/ E no meu coração a Essência transcendente/ Viu [e vê, no aqui e agora] que era a luz do Amor», inegavelmente uma escolha  profunda e elevada, que pode ser iniciática mesmo, e que o leva a escrever no fim da citação, «Estas são duas das mais belas sínteses que conheço acerca da doutrina da UNIDADE do HOMEM com DEUS.»
Podemos admitir que o provável título ideal da sua palestra. mas que, talvez por ser muito ousado, foi preterido, seria: Doutrina da Unidade do HOMEM com DEUS.
Defende então Filipe Furtado de Mendonça que o ser humano tem de deixar de ser escravo das emoções de natureza carnal e «aperceber-se da Divindade que nele existe», libertando-se de doutrinas e dogmas extravagantes, saindo da mentira, da sua natureza inferior, das emoções que o prendem, muito causadas pela torturante luta na vida material e começando a viver mais fraternalmente, em beleza e amor. [Outra lembrança mantra bem valiosa...]
Finalmente. Filipe Furtado de Mendonça revela outro dos seus inspiradores, Krishnamurti, autor indiano com alguma divulgação em Portugal desde as primeiras décadas do séc. XX e que com perseverança questionou vida em conflito que caracteriza o ser em geral, em especial devido à sua inserção em pequenas capelinhas de religiões, partidos, seitas, opiniões, ele próprio quebrando aquela que a Sociedade Teosófica mistificadoramente o educara e tentava encerrar, ainda que atribuindo-lhe o grandioso título de Instrutor do Mundo, ou o Avatar, como tanta publicação mundial, e até portuguesa, nas primeiras décadas do século XX divulgava.
Para Filipe Furtado de Mendonça a humanidade não devia estar tanto em sofrimento mas sim usufruir da vida maravilhosa divina e estava num certo caos «porque fechando-se em círculo estreito da baixa materialidade, não tem sido capaz de fazer o mais leve esforço para compreender e viver os altos ensinamentos que os diversos instrutores através dos séculos lhe têm trazido».
Realcemos tanto o chamar mestre insigne a Teixeira Pascoaes como a referência aos Instrutores, sabendo-se até que eles foram rejeitados por Krishnamurti (1895-1986), pois fora no princípio da sua carreira considerado pelos dois dirigentes da Sociedade Teosófica Annie Besant e Charles Leadbeater (que o avistara e reconhecera em 1911) como o possível novo Instrutor mundial, um novo Cristo, ou o novo Buda Maitreya, algo que ele passado há alguns anos de estar à frente da Ordem da Estrela, para tal fim criada, deixou de aceitar, seja como estatuto de si ou missão no mundo, dissolvendo a Ordem em 1929, saindo da Sociedade Teosófica em 1930, e passando a caminhar por si mesmo, pois «a Verdade sendo ilimitada, incondicionada, não aproximável por qualquer caminho, não pode ser organizada; nem deve qualquer organização ser formada para levar ou coagir as pessoas por um caminho particular (...) A partir do momento que seguimos alguém, deixamos de seguir a Verdade», sem dúvida uma afirmação heroica, quase Nietzcheana mas que tem de ser tomada com cautela, pois em geral, sem sermos seguidores, precisamos de ser ensinados, ou iniciados....
Filipe Furtado de Mendonça chama a Krishnamurti  (1895-1906) um dos maiores pensadores contemporâneos (e como o terá conhecido, não sabemos, mas muito provavelmente terá sido apenas por livros, revistas e panfletos...) e realça nele a afirmação de que «algo de sublimemente real, infinito, existe, porém para descobri-lo, não deve o homem ser uma máquina imitadora e as suas estreitas concepções a isso o levam». 
Neste alargamento de consciência até ao Divino labora então Filipe Furtado de Mendonça e, sentindo (e muito bem) presente Deus em toda a Natureza e seres que nos rodeiam, afirma que devemos também realizá-lo em nós próprios «porque somos a sua Imagem e Semelhança» e, coerentemente, agir abnegadamente a fim de em espírito e em verdade, «finalmente, conquistarmos a Paz, a Abundância e a Alegria, que são os atributos divinos: - Os nossos atributos.»
Nas três páginas finais acrescentou sob o título Impressões da Crítica, aquela que Albino Fernandes de Sá lhe teceu e onde aponta alguma discordância quanto aos laivos de panteísmo e de plena divinização do homem,  realçando o entusiasmo e boa vontade manifestados e valorizando-o: «Furtado Mendonça vibra de amor e de ternura pela humanidade. Não ataca. Limita-se a fazer a apologia do seu modo de sentir que julga ser a verdade».
Esta conferência, patrocinada pela Sociedade Cultural de Angola, de 1950, é um belo elo da Tradição Espiritual Portuguesa manifestando-se noutros continentes e veiculando algumas ideias e intuições sobre o relacionamento da Humanidade e a Divindade, e nela destacaremos para finalizar a sua crítica da crença em dois pares de opostos, o Bem e o Mal, e como deveríamos estar mais libertos de tantas energias obstructoras e falsas identificações, de modo a vivermos a vida divinamente, em liberdade, beleza, solidariedade e amor, ideal que no plano físico encontra sempre oposições e impossibilidades mas que nos mundo espirituais é plena realidade.
Sabermos equilibrar a luta no mundo, tão destruído pelos insensíveis, egoístas ou ineptos políticos e gestores, preservar no amor da Natureza e da Humanidade, e cultivar a religação e a comunhão com o nosso espírito, e com os outros, e os Mestres, os Anjos, a Divindade, eis a tarefa, missão, criatividade nossa...
Do mundo espiritual, por Bô Yin Râ, um bom mestre!

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