segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Antero de Quental visto por Manuel Bandeira, no centenário do seu nascimento, 1842-1942.

Antero de Quental recebeu em 1942 as merecidas comemorações do centenário do seu nascimento em algumas partes do mundo, nomeadamente no Brasil, onde uma sessão com Manuel Bandeira (1886-1968) e Jaime Cortesão (1884-1960) decorreu no Rio de Janeiro, no palácio da Associação Brasileira de Imprensa, tendo ainda  sido lidos alguns dos seus poemas por Margarida Lopes de Almeida. Um ano depois, Jaime Cortesão fez publicar os textos das duas conferências numa pequena brochura de 47 páginas, nos Cadernos da Seara Nova, em Lisboa. 
Manuel Bandeira discursando na Academia Brasileira de Letras, em 1940.
Ao lermos a conferência de Manuel Bandeira, poeta modernista e cronista, tradutor e jornalista, e já então laureado com o acolhimento na Academia Brasileira de Letras (1940), observamos como ele tendeu a ver Antero de Quental sobretudo como poeta e se, por vezes, vê bem o seu interior anímico, tal como quando refere a tal voz da consciência por Antero muitas vezes referida, escrevendo: «Na crise de consciência, em que, diante de um mundo deserto de deuses, só via a ilusão e o vazio universais, aquela pequenina voz que protestava e afirmava o Bem, inclinou-o, cada vez mais de modo absorvente, a meditar sobre o destino do homem e o fim do Universo», já noutras vezes perde-se, tal como lemos, logo em seguida, menosprezando ou quase escarnecendo de Antero:
«Esse poeta, que confessou por escrito nunca ter pretendido ser poeta; que nos últimos anos da existência, verdadeiramente só prezava meia dúzia de sonetos, dos últimos, os únicos que lhe pareciam ter "a nota exacta e sã", esse poeta, esse imenso poeta julgava-se, candidamente porque era um puro, julgava-se um filósofo, e que filósofo! o que teria divisado "a direcção definitiva do pensamento europeu, o Norte para onde se inclina a divina bússola do espírito humano"». 
Destacaremos que essa "nota exacta e sã" da meia dúzia de sonetos será sempre algo subjectiva, nomeadamente para nós hoje no séc. XXI, mas não na altura para o seu autor em intensa e dramática demanda filófico-existencial, e com a sua geometria auditiva, rítmica e formal. E se em relação Antero é difícil sabermos os sonetos que considerou ele os mais perfeitos estética, filosófica e espiritualmente, embora recomende alguns, uns poucos de pensadores apresentaram as suas escolhas, tal como Jaime Cortesão, indicando como os mais belos O Convertido, Espiritualismo, Quia Aeternus, Homo, Logos, À Virgem Santíssima, na conferência acima mencionada e sobre a qual escreveremos brevemente. Eu, todavia, sem considerar penas o critério da beleza, estou de acordo com a cifra de meia dúzia, apresentada até mais por Bandeira que por Antero (que falava de uma dúzia...), pois de facto a nota pessimista e a falta de manifestação do espírito e do Divino só em meia dúzia de sonetos é verdadeira e luminosamente transcendida e preenchida.
Se Antero de Quental realmente divisou a direcção definitiva do pensamento moderno ou europeu, o Norte para onde se inclina a bússola do Espírito humano ou não, é uma questão importante de se cogitar e, mau grado a tendência para alguns desvalorizarem as Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, em Portugal tanto, por exemplo, Sant'Anna Dionísio e Eduardo Lourenço muito apreciavam tal ensaio, e intuímos que tanto Leonardo Coimbra como Fernando Pessoa tiveram bastante em conta tal obra, nomeadamente o primeiro  comentando-a extensamente num livrinho, enquanto Fernando Pessoa exprimiu elogios  e traduziu para inglês vários dos Sonetos.  
Ora esse "Norte" em parte era o panpsiquismo, a ligação íntima entre a matéria-energia e a consciência e informação, a omnipresença da energia psíquica e a comunhão crescente dos seres nessa noosesfera da Verdade, com o concomitante desenvolvimento de capacidades psico-espirituais, ou mesmo de religação ao Bem moral e à fonte Divina. É contudo certamente uma área ainda hoje muito desconhecida e que cientistas e espirituais tentam participar e fazer avançar o conhecimento...
Manuel Bandeira já vê bem que em Antero de Quental se encontrava no mais alto grau essa característica dos poetas «que é pensar por imagens» e que na sua «imaginação soberanamente plástica as ideias mais abstractas se transmudavam, como por encanto, ao toque da emoção, em radiosas visões arquitecturais e esculturais; plasmavam-se subitamente os fantasmas em matéria palpitante».
Mas já vê menos bem quando pensa que Antero queria «na sua razão filosófica aniquilar o mundo natural, ou pela negação pura e simples, na fase pessimista, ou na fase final de serenidade, pelo que ele mesmo chamou de panpsiquismo, processo de evolução, segundo o qual o Universo gravitaria obscuramente, inconscientemente, para um estado psicológico puro». 
Este panpsiquismo de Antero é certamente dos campos mais profundos e menos discernidos pelos comentadores anterianos e que tanto corresponde à Alma do Mundo, ou à Noosfera como ao moderno Campo Unificado de energia informação consciência e que de um ponto de vista científico e de dinamismo energético consciencial está a ser mais cada vez mais sondado, consciencializado e explorado pelos seres humanos e do qual o magnetismo e a telepatia eram já sinais para Antero, como ele refere algumas vezes... 
Erra ainda, ou dá uma interpretação sobrevalorizadora  da poesia quando se interroga: «Donde partiu Quental para chegar à solução que o deixou liberto e adormecido na mão de Deus, - na sua mão direita? Não foi da razão de filósofo; foi sim, daquela voz interior - " não sei que voz que eu mesmo desconheço" assim se exprimiu em verso, e em carta a seu amigo Fernando Leal: «No fundo do coração há uma voz humildade mas que nada faz calar, a protestar, a dizer-lhe que há alguma coisa por que se existe e por que vale a pena viver". Voz do subconsciente, voz da poesia nesse homem...» 
Erra neste ponto, parece-me, porque não chegou Antero a essa solução que o deixou liberto e como que adormecido na mão direita de Deus, uma imagem algo passiva que tanto foi do agrado de Oliveira Martins, que a pôs mesmo no fim da edição final e completa dos Sonetos, nem foi pela poesia ou voz interior, que não são aliás sinónimos, embora certamente haja poesia que é verdadeiramente Voz da Consciência ou Música das Esferas ouvida ou intuída e passada para palavras e para o papel. Erra ainda Manuel Bandeira porque não é voz da subconsciência mas sim da superconsciência, ou do espírito.
Foi tal imagem do descanso do coração na mão de Deus uma forma apenas sensível e religiosa de terminar um dos seus sonetos de modo suavizante e, trabalhando a sua tendência fantástica pessimista, como por alguns se costuma caracterizar. 
Como poeta e cultor da identidade do ser poeta, um fiel da Poesia, diremos nós, Manuel Bandeira dirá com alguma justificação que «das suas cartas aos amigo se percebe como a sua alma atormentada se dilatava com serenidade toda vez que o espírito conseguia formular em verso as soluções intelectuais morais e sentimentais a que ia chegando», mas creio que isso se passou tanto ou mais na sua demanda de escritor e de filósofo em demanda da verdade e da claridade, e algo que partilhava sábia e amorosamente na correspondência, tal como Erasmo quatrocentos anos antes, mas que não sabemos que efeito psicológico interno tinha nele esse confessar, desabafar ou até mais aprofundar sentidamente e em diálogo de partilha com quem era seu amigo ou companheiro de ideais e de jornada. Mas, claro, é um facto que quase todos os que escrevem sentem a expansão de consciência, de alegria ou gratidão que ocorre quando  finalizamos uma poema ou texto bom. 
Também é valiosa e discutível a visão final que dá de Antero: «Formulado em imagens nos sonetos da última fase o seu panpsiquismo, o seu misticismo, o seu budismo, a sua chamada teoria da santidade, o poeta calou-se. Calou-se porque compreendeu que já dera a expressão exacta do seu íntimo e definito sentir. A poesia já se podia retirar daquele ser doente, e de facto se retirou. O filósofo ainda pensou em pôr por escrito o seu sistema. Muitas vezes falou em tal, mas no íntimo sentindo a impossibilidade de se exprimir por outras vozes que não fossem as da poesia. Lamentando-se disso, é certo, mas sem grande convicção».
Um poema de Manuel Bandeira que Antero nunca assinaria, pela sua grande sensibilidade anímica e abertura à fraternidade das almas...
 Perante os factos biográficos temos de discordar que Antero, quando pôs fim à sua actividade de poeta, já tivesse chegado à formulação por imagens do seu panpsiquismo e misticismo, e que já dera portanto expressão exacta do seu íntimo e definitivo sentir, pois então teria de viver cerca de 15 anos em estado fossilizado ou estagnado psiquicamente. Ora ele conseguiu passar o seu sistema em grande parte para a escrita (mal grado a sua tendência socrática e maiêutica)  nas Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, texto dado à luz na Revista Portugal em artigos datados de 1890, um ano antes de partir, e trabalhado mais intensivamente nos últimos anos da sua vida. 
Aliás a referência que Manuel Bandeira faz inicialmente, e já transcrita, algo menosprezando as Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, e a que faz a meio do seu livro, parecem-nos incorrectas: «Ainda quando tentou esboçar em prosa o sistema das suas ideias, como em Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX ou em cartas a amigos, fê-lo por meio de comovidas afirmações de poeta, por meio de imagens do poeta. Já o notara Adolfo Coelho ao escrever que «a exposição do escritor não seguia de modo nenhum o teor da demonstração: é um credo que se enuncia, e esse credo tem em parte o aspecto de poesia em linguagem de prosa". A filosofia de Antero é a de um ser moral por excelência, muito bem definido por Oliveira Martins como um poeta arrebatado pela visão inextinguível do bem".» 
Discordamos nesta parte pois são muitas as expressões perfeitas em prosa de aspectos valiosos e profundos do seu sistema ou, diremos melhor, tentativas de visão compreensiva do mundo e do Ser, e que não se tratam de comovidas afirmações de poeta, mas antes escritas na característica até da tradição espiritual portuguesa  do sentir e pensar unidos, a união da cabeça e do coração, para além de tentarem cingir, abraçar e incluir os domínios mais subtis da existência e da essência íntima.
Também não são nada indicados para apreciar de modo "definitivo" Antero de Quental, seja Oliveira Martins, que nunca compreendeu bem os aspectos mais profundos da espiritualidade de Antero e menos ainda o positivista Adolfo Coelho, que anos mais tarde atacou fortemente os modernistas de Orpheu, certamente por não seguirem o teor da demonstração racional que ele Adolfo Coelho quereria na poesia... 
O final da conferência de Manuel Bandeira é belo, embora possamos questioná-lo: «O corpo doente ainda sofreu muito, e tanto que procurou remédio na morte voluntária. Mas alma, essa estava apaziguada, porque já havia cumprido o destino com que viera marcado de berço - destino de grande poeta, intérprete dos anseios humanos mais fundos e mais puros». 
Questionamos esta conclusão pois ela aponta para uma falha no estoicismo de Antero: este ter-se-ia matado porque sofria muito no corpo doente, já que a sua alma estava apaziguada, pois cumprira o seu destino de grande poeta, e assim subentende-se que poderia descansar, ele ou o coração, na mão direita de Deus, que não à esquerda... 
Pensamos que embora houvesse sofrimentos da dispepsia, nervos, insónia, tudo se passou mais no campo psíquico e aí Antero não estava apaziguado plenamente, nem pela poesia que escrevera nem pela filosofia que alcançara, faltando-lhe provavelmente a base dum ambiente familiar ou humano amoroso que o apoiasse, ou mesmo uma relação amorosa forte com uma mulher, e sobretudo o coração vivo e o olho espiritual mais aberto na relação pessoal com o seu espírito,  com o Anjo da Guarda ou o Mestre e maxime com a Divindade, embora sem dúvida o que o precipitou para o suicídio foi o falhanço do seu regresso final aos Açores e a perda do contacto com as duas suas protegidas Ermelinda e Beatriz, a quem se afeiçoara.
Mas já é possível que Manuel Bandeira tenha alguma razão no aspecto de Antero de Quental ter entendido que já dera o que podia dar e que preferia abreviar a existência do que continuar em certo sofrimento, desilusão e frustração, pois em verdade já tinha uma certa idade, a vida não lhe estava muito agradável em vários aspectos e, sentindo que já cumprira a sua missão nos aspectos principais, e no que lhe fora possível no meio que o rodeou, porque não entrar voluntariamente no reino da morte, ele que tanto fora atraído por ela, invocando-a e chamando-a de irmã e equiparando-a ao amor, Mors-Amor
A morte de Antero de Quental, ainda que possa ter sido causada por certo desequilíbrio momentâneo nervoso decorrente do que se estava a passar de desilusão nos Açores, nomeadamente a separação das suas jovens protegidas, pode ainda assim ter tido certa serenidade. E estaria ele acompanhado invisivelmente nessa sua cruz final, que ele já em carta uma vez dissera que não largaria? 
Quanto ao que ele não conseguiu desenvolver, outros vieram e virão para o cumprir e assim  se insere ele numa Tradição Espiritual Portuguesa, tal como nós hoje no séc. XXI o meditamos. Nesse sentido escrevera até Fernando Pessoa, altamente devedor de Antero de Quental, em especial nos seus primeiros tempos da revista da Águia: «Por que característicos, por assim dizer, exteriores se pode conhecer o sentimento transcendentalista? Nas duas formas menos complexas do transcendentalismo, o materialista e o espiritualista, o indivíduo sente-se, como o panteísta, parte de um Todo, mas com a diferença que, para ele, esse Todo é sentido como irreal, como ilusório. Decorre daqui que o poeta transcendentalista (materialista ou espiritualista) fatalmente será um poeta pessimista. Mesmo que, transcendentalista espiritualista, conceba como vagamente espiritual o Transcendente, esse Transcendente, por sua própria, concebida, natureza, é sentido como Mistério, e mesmo onde levanta abate. - Percorrendo todo o Romantismo não encontramos este sentimento; apenas, em Alfred de Vigny, e nos seus descendentes, já pós-românticos, há um vago arremedo dele. Mas, ao atentar bem nos característicos que deduzimos como devendo ser os da poesia transcendentalista, revela-se-nos imediatamente que estamos em Portugal e em plena descrição da poesia de Antero. Concluímos, pois, que especiais condições de raça fazem do sentimento transcendentalista apanágio de Portugal. Se o transcendentalismo sob forma de emoção começou entre nós, entre nós deve continuar. Vejamos, pois, se a sua forma mais alta e complexa, o transcendentalismo panteísta, foi, acaso, atingida já.» 
E será esse transcendentalismo panteísta que Fernando Pessoa, neste ensaio escrito para a revista Águia em 1912 esboça e demonstra (e tendo bastante na mente Antero, poeta e filósofo), e que desenvolverá com os heterónimos, para depois os deixar e, como ele próprio, chegar aos poemas mágicos e iniciáticos, os quais em vários aspectos poderemos considerar na filiação espiritual aprofundante do panpsiquismo e da bússola divina entrevista por Antero de Quental e que hoje ainda nos desafia seja na nossa psique seja no nosso íntimo mais profundo e sagrado. 
Visão da montanha espiritual da realização e da Terra, em pintura do alemão Bô Yin Râ. 
Que ela tenha substituído em Antero a do "Palácio Encantado da Ilusão"...

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