quinta-feira, 14 de julho de 2016

Raul Proença e Antero de Quental e Fernando Pessoa a Liberdade e a Verdade...

             Raul Proença,  Antero de Quental e Fernando Pessoa: a espada da verdade e da liberdade.
                                                    
                          
               «Se esta espada que empunho é coruscante, É porque ela é a espada da verdade».
Quem se assumiu claramente como amigo de Antero do Quental, valorizando a sua obra e pensamento, foi um pensador e doutrinador político, um dos fundadores (com Jaime Cortesão e Luís da Câmara Reys) em 1921 do movimento cívico e democrático da revista Seara Nova, Raul Proença (Caldas da Rainha, 1884-1941), que dirigiu ainda a Biblioteca Nacional, e escreveu e coordenou o pioneiro Guia de Portugal, em 16 volumes, na parte final já por Sant' Anna Dionísio, que ainda conheci bem.
                            
                             Os fundadores e colaboradores da Seara Nova. A partir da esquerda, em pé:                                Teixeira de Vasconcelos, Raul Proença e Câmara Reys; sentados: Jaime Cortesão,                                Aquilino Ribeiro e Raul Brandão. 
Dos mais esclarecidos pensadores republicanos, Raul Proença escreve talvez a primeira e mais ardente defesa da Liberdade que, face ao golpe militar de 1926, se encontrava ameaçada, situação que viria a durar de um modo ou doutro até 1974. 
A capa ilustrada da obra Panfletos I A Ditadura Militar que apresentamos está subordinada ou inspirada (por vezes dois sinónimos...), a uma frase transcrita de Antero: 
"Se esta espada que empunho é coruscante,
É porque ela é a espada da verdade».
Corajosamente escrita no calor do rescaldo da revolução do 28 de Maio de 1926, ela denuncia o que se está a passar e desfere ataques muito clarividentes à ditadura militar instaurada, considerando-a um crime ("um verdadeiro acto de alta traição") e denunciando a caterva de corruptos que abancava já mediocremente com o general Carmona, asperamente acusado e fustigado com os ministros Sinel de Cordes, João de Almeida, João Belo, Manuel Rodrigues Júnior, Felisberto Alves Pedrosa, Jaime Afreixo, Ribeiro Castanho, Bettencourt Rodrigues, Ricardo Jorge, Abílio Valdez de Paços e Sousa e, fora destes, Cunha Leal.
A obra é ainda hoje actual, com todo o seu sabor panfletário, tanto porque os grupos de pressão financeiros nacionais ou internacionais continuam a influenciar senão mesmo a corromper os políticos e seus partidos em Portugal como pelo facto de Raul Proença escrever numa linguagem poderosa, ousada, ardente na demanda de liberdade e de verdade. Não admira que edição de autor, feita sem a aprovação da recém-nascida Censura, tenha sido rapidamente proscrita e Raul Proença perseguido.
Instaurada a censura, sente ao escrever este panfleto que será certamente o último e, após ter elogiado o estilo panfletário, exara este comentário a tal medida: «Dir-se ia antes um acto praticado com longínqua e consciente premeditação, pelo ministro da Injustiça e dos Incultos. Nos tratados de história literário do futuro vai dizer-se: " O Panfleto durou até o ano de 1926, em que o extinguiu o ministro da Justiça Manuel Rodrigues Júnior, indivíduo profundamente bacharel que de Coimbra tinha trazido o ódio a toda a frescura da vida e a toda a afirmação duma personalidade vigorosa...»
Passando em revisão os outros ministérios anota quanto ao de Educação, onde assistimos ainda neste século XXI a algumas ministras e ministros que foram destruindo as condições necessárias ao harmonioso magistério dos professores e a uma boa qualidade do ensino público «que o ministro da Instrução fez uma reforma inverosímil de tacanhez, de preconceitos intelectuais, de teorismos esquemáticos, de fumisteries livrescas, como uma pessoa que nunca teve o menor contacto com as realidades e cujo cérebro vive de ecos, sombras, reflexos, fogos fátuos, incapaz de aprender alguma coisa nitidamente e com largueza. António Sérgio, com razão, chamou-lhe um bárbaro retrocesso.»
Passando a Sinel Cordes, escreve desassombradamente Raul Proença: «O ministro das Finanças, tantas vezes citado anteriormente como o homem mais inteligente de todo o Exército, não revelou ainda em matéria financeira uma orientação precisa. Vagueia, flutua como uma bóia no encapelar das ondas...
Mais à frente, e de novo criticando o que ainda hoje se tem feito tantas vezes diz: «Sob o ponto de vista dos contratos e dos auxílios financeiros, pode-se dizer que a acção do Governo tem consistido em uma política de ruína do Estado em benefício exclusivo das empresas particulares, e como que numa criminosa transferência de fundos. À Companhia Nacional de Navegação, por exemplo, venderam-se os navios alemães [não foram submarinos...], como se poderiam ter vendido a mim ou ao leitor; é certo que é a Companhia quem paga, mas é o Estado quem adianta o dinheiro»...
A lição de mestre que Raul Proença nos oferece neste panfleto é para durar sempre: «Mas há quem pense que não vale a pena combater este governo, por isso que ainda vivemos em República [hoje dir-se-ia Democracia...). Que ironia! República! Que ironia, ou que imbecilidade!
Os que assim pensam ou julgam pensar têm mais amor às palavras do que aos factos, às cores da bandeira dum regime que à sua própria essência (...) 
Mas a República não é uma palavra. É um ideia, um conjunto de princípios, de aspirações e de realidades. Por uma palavra, pelas cores de uma bandeira, não valeria a pena combater e morrer. Só vale a pena combater e morrer por bens morais iniludíveis. Ora a República sem a liberdade é a casca seca sem o fruto suculento, a palavra sem o facto - e no fundo uma mentira (...)
A república do sr. Castanho, do sr. Carmona, do sr. Rodrigues, do sr. Sínel, do sr. Afreixo é infinitamente menos republicana que a monarquia do sr. D. Manuel. É-o na essência das coisas, que importa mais que as palavras...»
Diagnosticando os males essenciais dos portugueses, Raul Proença, assinala alguns que permanecem estruturais ou caracterológicos, tais como «a incapacidade de todo o esforço seguido, de exercermos a atenção por muitas horas, de fazermos qualquer coisa com continuidade (...), o culto passivo do passado, tão inteiramente estéril, que nas nossas datas gloriosas buscamos apenas o pretexto dum feriado, e não achamos maneira de comemorar o trabalho alheio senão com a ociosidade própria (...), com a falta de energia e de resistência física, a incapacidade de protesto, que é uma das maiores calamidades e das mais anti-sociais, da nossa psicologia colectiva. Suportamos todos os abusos, todos os vexames, todas as violências, todas as extorsões com uma paciência, que não é a da resignação evangélica, mas a do burro lazarento a quem não importa já a morte, contanto que o não forcem a mexer-se e que não o macem. Este povo perdeu a energia, a responsabilidade, a decisão, o civismo do Coice. Não vale escoicear: é uma maçada, deixem-nos dormir...»
Será na apreciação literária que referirá mais Antero: «uma literatura caracterizada pela falta de virilidade no pensamento e na expressão, e pela ausência de verdadeira emoção intelectual, quando não às vezes por um perturbante psitacismo. Nos nossos romances não há conflitos nem personagens, nos nossos contos acção ou interesse dramático, nos nossos poemas um frémito sequer dos eternos problemas do Espírito ou a alegoria superior dum Símbolo. O único nome verdadeiramente grande que apontamos no romance é Eça de Queirós; e o único poeta-filósofo de que possamos jactar-nos Antero de Quental. A poesia de Junqueiro, longe de ser uma excepção, é uma confirmação à regra, porque a sua lira, monocórdica sob o ponto de vista conceptual, não encontrou outra fonte de emoção para além do estafado tema da eterna evolução dos seres. Nenhuma outro problema do Universo ou da Consciência preocupou o nosso poeta: comparem com Prudhome, com Vigny, com Antero... Além disso, Junqueiro nunca pensa intelectualmente, se assim nos podemos exprimir, sobrepondo-se nele a visualidade da imagem às verdadeiras leis do pensamento. O pensador que pretende ser é constantemente ludibriado pelo puro artista, pelo fazedor de imagens e de analogias e contrastes inteiramente superficiais, que de facto é; quando ao contrário, no pensador poeta, a Imagem não é a substituição do pensamento, mas o seu intérprete...», o caso de Antero de Quental, diremos ao finalizar...
Ressalve-se ainda que na pág. nº 79 e nas duas últimas linhas Raul Proença assinala corajosamente em letras maiores: «Este panfleto não foi visado pela Comissão de Censura».
        II- Talvez valha ainda acrescentar a transcrição, desta obra de sempre útil leitura, de um dos parágrafos das Perspectivas Futuras onde apelará à revolução interior, depois de pedir «à Revolução que ela me reconheça, e reconheça a todos os Portugueses espiritualmente válidos, o direito de exercer uma influência inteiramente eficaz sobre a nossa própria terra - de espalhar pela vasta seara a nossa semente - de sermos os criadores dum novo estado de espírito e de uma nova alma colectiva. Para isto é-nos absolutamente necessária a liberdade, de que os Rodrigues [Manuel Rodrigues Júnior tola e mussolinicamente chasqueiam nas suas notas oficiosas. É ela, verdadeiramente, a condição sine qua non do nosso ressurgimento ...» 
Raul Proença que «ao contrário dos que pedem o Homem forte na Política, eu peço o Homem forte, os Homens [e Mulheres] fortes na Acção espiritual. Porque o Homem forte na política impõe a sua vontade opressiva; e o Homem forte na acção espiritual convence da sua doutrina libertadora. O político, em boa verdade, - nunca vos disseram isto, mas é assim mesmo, - não deve ser um «criador», mas um «executor». São os intelectuais de «acção», de «acção forte», concebidos segundo o tipo de Mussolini, mas sem os seus erros, as suas loucuras, a sua falta de visão filosófica, a sua criminalidade, o seu ódio à Democracia, que darão a esta a sua expansão formidável, a sua profundidade, o seu desabrochamento apolíneo, a sua força e o seu esplendor. Confio no belo dia de amanhã, tão cheio de promessas - no dia em que nós, os homens [e mulheres] de pensamento, tenhamos mais poder sobre as almas que os homens dos conchavos eleitorais e das tricas financeiras. Será esse o triunfo da Democracia, o triunfo que Mussolini queria impedir, o que ele só tornará mais esplendoroso e mais vivo». 
E entra então na transmissão da sua visão original, na Tradição Espiritual Portuguesa, e bem intensa da revolução de consciência que se exige:
«Mas para isso é necessário fazermos também a nossa própria revolução interior. É preciso pôr a beleza ( a beleza da vida que se oferece, que se multiplica, que fecunda e realiza) não só fora do nosso ser, nas nossas estátuas, nas nossas sinfonias, nos nossos poemas, mas também dentro de nós mesmos. É preciso que concebamos a vida como um dom constante da nossa alma. Darmo-lo até em sangue, até ficar dilacerada e partida, no fundo sempre mais bela e maior. [Valiosa esta visão do crescimento-aperfeiçoamento-embelezamento da alma, pelas mortes sacrificiais e posteriores renascimentos, expandidos consciencialmente..]. Devemos ser excubitores, despertadores e animadores, dar Alegria à nossa terra [Leonardo Coimbra acabara de escrever na mesma linha, com o seu belo livro Da Alegria, do Amor e da Graça], matar o cepticismo, pôr termo a esta apagada e vil tristeza. Todas as revoluções com que nos temos "heroicizado" são feitas no Charco, na vasa do pântano que se agita e que, quanto muito, só liberta miasmas. Há que transformar o Charco, há que criar, antes de mais nada, como no Génesis, o Movimento e a Luz...»
As últimas linhas da obra Panfletos, I - A Ditadura Militar falam de novo da grande Alma Portuguesa ou da Tradição Espiritual Portuguesa e são algo visionárias, pois perante a ameaça da opressão visiona o desfile dos traídos, no qual vêm os que morreram para que a República e a Liberdade desabrochassem « e depois vem o imenso tropel dos Vivos - dos Vivos que verdadeiramente querem viver - vida humana, a vida nobre, a vida do espírito - todos esses fragmentos de Esperança disseminados pelo grande corpo de Portugal, que esperam o momento de se ligar, de se unir, de reconstituir o feixe partido.
Passam - e não sou eu, mas todos eles, que falam pela minha boca, que pedem o castigo deste enorme crime, o eclipse desta funda vergonha, o resgate deste opróbrio, a vitória da sua fé. Passam - e é o próprio futuro de Portugal que passa, com os olhos banhados já na claridade ténue da ante-manhã...»
A este desfile de seres que se sentem traídos se juntará Fernando Pessoa, que depois de em 1928 ter escrito um folheto o Interregno apoiando a Ditadura Militar foi abrindo os olhos do discernimento, e escrevendo desde 1932 um contra-folheto intitulado O Interregno e as suas Consequências (que permanceceu incompleto e na época inédito) e que culminou em 30 de Outubro de 1935, conforme a carta a Adolfo Casais Monteiro com essa data e na qual lhe anuncia a sua inibição «de dar colaboração para a Presença, ou para qualquer outra publicação aqui do país, ou de publicar qualquer livro», visto que «desde o discurso que o Salazar fez em 21 de Fevereiro deste ano, na distribuição de prémios no Secretariado da Propaganda Nacional [à qual Fernando Pessoa apesar de premiado com a Mensagem recusou-se a comparecer], ficámos sabendo, todos nós que escrevemos, que estava substituída a regra restritiva da Censura, «não se pode dizer isto ou aquilo», pela regra soviética do Poder, «tem que se dizer isto ou aquilo». Em palavras mais claras, tudo quanto escrevermos, não só não tem que contrariar os princípios (cuja natureza ignoro) do Estado Novo (cuja definição desconheço), mas tem que ser subordinado às directrizes traçadas pelo orientadores do citado Estado Novo. Isto quer dizer...»
Será dentro deste ambiente que a parte final da Mensagem será escrita e não podermos deixar de pensar que Fernando Pessoa tenha lido o folheto de Raul Proença e glosado as suas linhas finais da claridade do ante-manhã e da esperança nos fratres et sorores em versos da Elegia na Sombra e da Mensagem, da qual transcrevemos o último:
NEVOEIRO
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro…
É a Hora!
Valete, Fratres.»
Meditemos e actuemos então amorosa e luminosamente em comunhão com a Tradição Espiritual Portuguesa, donde as almas de Antero do Quental, Raul Proença e Fernando Pessoa nos procuram inspirar e impulsionar para o Bem da Humanidade...

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