sexta-feira, 29 de julho de 2016

Antero de Quental e o soneto "Na mão de Deus", com que conclui os "Sonetos completos", 1886.

                                                            «Na mão de Deus
                         (À Exm.ª Sr.ª D. Vitória de O[liveira] M[artins].)

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lobrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!»

A escolha  de se finalizar a edição dos Sonetos Completos, de Antero de Quental,  com um soneto que não é dos finais, mas sim escrito antes em 1882, deve ter tido um intuito moralizador ou mesmo catolicizante, fazendo mais explicitamente terminar a bem, ou na entrega a Deus, o atribulado percurso filosófico, poético, religioso e anímico de Antero de Quental, muito espelhado e transmitido neste livro, ordenado cronologicamente de 1860 a 1884. Pode ter sido uma decisão de Antero, ou talvez conjunta com Oliveira Martins já que este foi o co-organizador
e prefaciador.
Neste poema, profundo e complexo, certamente algo auto-biográfico,
vemos o autor renunciar aos movimentos anímicos antigos, considerados agora como infantis, ilusórios, passionais e a entregar-se definitivamente a Deus, através do coração, símbolo da sua afectividade e alma, a quem ele "ordena" ou sugere que vá dormir na mão direita, a benéfica ou misericordiosa de Deus, numa simbologia tradicional de muitos povos, nomeadamente os gregos e romanos, e numa visão humana ou antropomórfica da Divindade, mas que Antero de Quental logo que redigiu o soneto explicou em cartas para os amigos que, por serem menos religiosos poderiam ficar mais surpreendidos, que a palavra Deus  era apenas "um símbolo de uma coisa". Veremos porém ser amenizada esta coisificação do Ser Divino ou da Fonte Primordial numa segunda carta, em que aponta mesmo as razões da sua génese, e
até numa auto-crítica salutar.
Por exemplo, a primeira, algo coisificante, é enviada a Alberto Sampaio,
provavelmente em Maio de 1882:«Fiz, depois que aqui estiveste, mais um Soneto, que aqui vai. Não te assuste a palavra Deus. É um símbolo e ainda o melhor para exprimir uma certa coisa, que doutro modo não caberia em verso. Pura liberdade poética». Na segunda, dirigida a João de Deus, em 20 Julho de 1882, escreve: «E agora aí vai um Soneto. Será talvez o primeiro de que gostes por mais de alguma coisa do que só pela forma. O meu pessimismo tem-se desvanecido com esta vida contemplativa no meio da natureza. Reconheci que andar por toda a parte proclamar, com voz lúgubre, que o mundo é vão, era ainda uma última vaidade...»

                                                     João de Deus, de S.Bartolomeu de Messines ao Panteão Nacional - RTP Ensina

Sabemos que João de Deus apreciou bastante o soneto e o queria divulgar, pois em Novembro de 1882, Antero de Quental responde-lhe em carta, dando-lhe conselhos acerca do local onde deveria começar a sua cruzada pelos novos métodos de leitura e ensino, Vila Real, e diz-lhe: «O soneto em questão não se pode publicar porque o ofereci a uma Senhora da minha  amizade [D. Vitória de Oliveira Martins], mas tão modesta e recolhida que tenho a certeza levaria a mal que eu imprimisse o nome, e por outro lado, não o quero publicar sem aquele oferecimento, de sorte que ficará indefinidamente inédito».
Todavia, já em 1883, em 17 de Junho, envia o Na Mão de Deus a mais
um amigo próximo, Joaquim de Araújo, dando outra justificação do secretismo: «Adiante transcrevo o Soneto que ofereci à D. Vitória. Em tendo vagar lhe mandarei mais algum. Nem este nem os outros são para mostrar a indiscretos. A razão deste mistério não é um capricho de misantropo; é que eu tenho projectado publicar mais tarde, quando de todo se me tiver esgotado a veia do Soneto, que já declina sensivelmente, a colecção dos meus Sonetos Completos. Como quero que o livreco leve alguma coisa inédita, resolvi não publicar nem deixar 
publicar quanto tenho feito nestes últimos tempos».
Apesar do seu carácter crente e de paz, no soneto há ideias-imagens
algo passivas e derrotistas. Por exemplo, a recomendação para a alma adormecer e dormir não pareceria muito de Antero de Quental, um ser com uma aspiração muito forte da Verdade, embora com um dinamismo sujeito a alternâncias. Contudo, o desgaste do sistema nervoso, o cansaço da busca metafísica, a desilusão sentimental e social e até uma certa abertura maior a uma crença num Ser Eterno poderiam causar-lhe a vontade de se entregar ao adormecimento ou descanso na mão divina, ou seja, na paz de Deus. E será que algo deste soneto lhe passou pela alma, na hora  insatisfeita, ou então plenamente desprendida, em que se suicidará anos mais tarde, em 1891, na sua ilha natal de S. Miguel?

                                                     

Talvez possamos compreender melhor o soneto se virmos Antero a pensar e a dizer: «eu não tenho mais um coração iludido, mas sim como ser espiritual que sou, liberto dos palácios da ilusão digo ao coração,  algo criança ingénua e fatigada da caminhada: - dorme em Deus, descansa.»
E certamente poderemos ainda conjecturar, que poderia ser apenas por algum tempo, a fim de se recompor, e não numa ideia de descanso eterno a que este poema pode remeter, pela associação com a terminologia da visão católica da morte e do além, e tão frequentemente usada nas orações ou missas pelos que morrem: "Descansai em paz, adormecei no Senhor", quando o que se deveria recomendar é: - "despertem, avancem para o mundo espiritual e para Deus".
Realcemos no começo, a expressão de passado empregue: "descansou". Se no fim do soneto está mais um presente imperativo, pois
é dito ao coração: "dorme", no princípio há um passado, que nos abre para a ideia da vivência árdua da vida trilhada interiormente por Antero de Quental, e nesse sentido emprega até uma imagem muito real e tradicional: "Desci passo a passo a escada estreita",   vivência que o obrigou a descer das grandes esperanças ou ilusões, das quais nomeia o Ideal e a Paixão, que sintetizam de certo modo as suas capacidades intelectuais e afectivas, para o humilde entregar-se a Deus...

                                                           

Se a palavra "Ideal" está perfeitamente de acordo com a filosofia e o ambiente cultural e revolucionário da época, e nela estão implicitamente a ressoar muitos escritores e filósofos com os quais dialogou nas suas leituras e nas conversas com os amigos (embora só se tenha encontrado pessoalmente, anónima e humildemente, com Jules Michelet, em Paris), já a "Paixão" é menos esperada.
Poderíamos pensar na palavra e conceito, sentimento e realidade do "Amor", mas Antero de Quental preferiu por certas razões escolher a "Paixão" e não vamos pensar que as escolhas foram apenas por questões de rimas, ainda que possam em certos 
casos terem sido os sinónimos encontrados mais próximos.
Se fosse o Amor intenso, talvez absolutizante, divinizante, tal como o de
Dante por Beatriz (humana e simbólica), então Antero de Quental se inseriria plenamente nos Fiéis do Amor. Mas das paixões, sobretudo amorosas, de Antero ficaram conhecidas, dada a sua reserva ou pudor amoroso, apenas zonas esbatidas, íntimas, quase angélicas, juvenis: a Beatriz, uma senhora de Coimbra, e a Pepa, a Mariana Porto Carrero embora por fim, já com mais idade, vemos a baronesa Clotilde, divorciada, que estava em hidroterapias como ele nas termas de Bellevue nos arredores de Paris, e que é a sua última paixão conhecida e da qual provavelmente se gerou magnífico soneto Mors-Amor, encontro passional que Oliveira Martins, exageradamente, diz ter feito não só sofrer muito Antero como quase o levado ao suicídio. 

Neste soneto, que conclui portanto a obra prima do poeta-filósofo, os Sonetos Completos, quem sabe se por escolha do seu grande amigo Oliveira Martins e a que Antero aquiescera, e seria bem interessante sabermos melhor do diálogo parturiense que terão travado, deparamo-nos com as duas colunas do Palácio da Ilusão, palavra que na tradição indiana é denominada Maya, e que é tanto o que se pode medir e quantificar e constitui o mundo, como o poder dinâmico da criação de formas e da manifestação da Divindade,  cultuada como a Shakti, a Deusa e energia cósmica (por contraposição ao deus Shiva, o espírito-consciência), e que se manifesta em nós com a energia ou dinamismo interno presente na coluna vertebral subtil dos plexos nervosos e da medula espinal, e que circula ainda segundo os yogis por dois canais de polaridades complementares que que se vão cruzando ao longo da coluna.
Este "palácio encantado da Ilusão", ou como Antero lhe chama noutro soneto o Palácio da Ventura, isto é, o local dos bens que hão de vir, também poderia ser chamado, no seu nível mais elevado,  como o Templo da Divindade, com as suas duas colunas e canais, a do Ideal do intelecto, razão, mente e a da Paixão e Amor do coração, ou seja, o masculino e feminino que temos de equilibrar ou complementar dentro e fora de nós para se realizar o milagre ou a obra alquímica da harmonia dos opostos, ou seja, vencerem-se ou controlarem-se os instintos, conflitos e frustrações e assim irmos unificando-nos psiquicamente, ou individuando-nos na linguagem psicológica que Carl Gustav Jung desenvolveu.
Antero sente e reconhece corporal e animicamente que se distanciou dos grandes sonhos juvenis revolucionários filosóficos bem como dos movimentos passionais afectivos, e que deve libertar-se do que são ainda conceptualizações e formas transitórias. E aspirando ou almejando ao Divino, ao Absoluto, ao Eterno e Perfeito, acaba por se entregar por fim, num abandono de confiança, na imagem da fé de uma criança que vai agasalhada ao colo da cansada ou já trôpega mãe  na jornada tão  complexa, e por vezes tão agreste ou sofrida, como foi a dele, da vida individual na  terra e no vasto e misterioso cosmos visível e invisível.
É numa posição de humildade, de ser abaixado como o húmus da terra, que Antero de Quental se confessa perante o mistério do Universo, entregando o seu coração nas mãos da Divindade para que Nela repouse.
Diria que a minha discordância ou reticências quanto às palavras e estados psíquicos que se evolam deste soneto, como já assinalei de certo modo, está no "dormir" e sobretudo no final "eternamente", que sabe um pouco a campa romântica do séc. XIX mas que pode ser redimida ou redimensionada se consideramos que o dormir tem a sua utilização figurada ou simbólica no sentido de se estar em íntima e confiante paz, repouso e entrega, algo que ele certamente necessitava e que desejaremos tanto para Antero como para todos nós, e não só para depois da morte mas no aqui e agora, de ser a Hora, esta a de nos podermos ligar, em silêncio e em paz, mais forte e confiantemente à Divindade, ao Bem, ao Amor, à Sabedoria, qualidades divinas aliás pelas quais A merecemos, e com Ela nos podemos ligar dinamicamente, ou seja, manifestando-A dentro dos nos nossos limites na escola, na casa, com os amigos, no trabalho, na aventura e na ventura...
Ou seja, podemos discernir neste soneto a elevada mensagem que o nosso coração se ligue, entregue ou abra a Deus e que as suas agitações, ilusões e atracções pelas formas transitórias e imperfeitas materiais, estejam como suspensas, adormecidas ou ultrapassadas e que nele vibre sobretudo a Luz e o Amor do Espírito e da Divindade, mistério dos mistérios, entrega plena que as crianças por vezes vivenciam com as mães gerando-se no aperto de mãos confiantes e nos corpos e almas juntos um circuito de energias vivas de amor que apoiam e  impulsionam fortificantemente no Caminho a percorrer.
Estaremos mais na mão de Deus, ou de mão dada com Ele, ou seja com a sua presença ou bênção mais em nós, quando vivemos justa, abnegada, bem, bela, corajosa e verdadeiramente.  E quando confiamos na Providência divina e nos seus mensageiros e guias para avançarmos na peregrinação da Vida, num desenvolvimento crescente das nossas capacidades, num melhor ligação íntima com a tão subtil Divindade, inserindo-nos assim melhor  no plano ou missão que nos compete no Cosmos e neste mundo e sociedade.
Entregar o coração na mão luminosa ou dourada da Divindade é o mesmo que entregar a estrela do nosso espírito na Divindade, é crer Nela e querer unir-nos a Ela, com todo, ou de todo, o corpo, alma e espírito, dos quais o coração é como o vaso ou graal. Neste sentido o soneto é de um simbolismo universal e perene.

                                                      
Que na Humanidade, no nosso íntimo e no de Antero de Quental o fogo do Amor e a Divindade ardam e brilhem mais... Demos graças.... Aum...

5 comentários:

Anónimo disse...

https://www.youtube.com/watch?v=-QiKaC8WAN4&index=36&list=UUoxBm6LBcnRarQUfDjL3dPw

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças...Complementam-se... Boas inspirações...

Maria De Fátima Silva disse...

Muito inspirador, Pedro! Muitas graças!

Iandella Cape disse...

Soneto muito belo de Antero,que o coração nosso repouse na mão direita de Deus.

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Desculpe Iandella Cape só agora ter visto o seu comentário. Sim,belo, e cada pessoa sentirá de modo diferente o que quer fazer ao seu coração quando chegar a hora da desencarnação. Repousar no seio Divino será certamente o desejo de muitos e que ele possa ser satisfeito ou concedido. Pax, Lux.