sábado, 7 de novembro de 2015

"Caim", de José Saramago, e a luta por um Cristianismo mais verdadeiro.

                                                                     
                                             CAIM, CAIM, de José Saramago...
O livro Caim, de José Saramago, dado à luz em 2009, bem como algumas das suas posteriores afirmações, originaram uma polémica na qual têm intervido escritores e políticos, teólogos e cristãos por inúmeras razões, das quais, a meu ver, as não menos importantes são as relacionadas, 1º, com o Deus do Antigo Testamento, pois será ele o mesmo Deus que o Deus (Pai) de Jesus e, 2º, com o possível erro do Cristianismo primitivo, e do nascente Catolicismo Romano, de colarem, à Torah, passando a ser chamada Antigo Testamento, o ensinamento de Jesus, sob o nome de Novo Testamento...
Será que a Bíblia ainda deve ser aceite no seu todo como verdade, se está repleta de imaginações desequilibradas, certamente não inspiradas por Deus, qualquer que seja o sentido que lhe atribuamos, e ainda por cima tendo sofrido ao longo dos séculos, e sobretudo no início, bastantes alterações e manipulações?
Se os próprios judeus hoje em dia quase só lêem e consideram como sagrados os cinco livros da Torah, o Pentateuco, e repudiam totalmente o Novo Testamento, não será porque sabem que são incompatíveis?
Aliás, Jesus apelou mais de uma vez para que se deixasse a Lei exterior, e se passasse para a lei ou frequência vibratória do Amor e da Graça, interior, consciencial, livre. “Disseram-vos, ouvistes, mas eu digo-vos...”
A uma sociedade feroz e, apesar de pretensamente eleita por Deus, jamais pacificada ou convertida à piedade religiosa, e por isso só semi-controlada por tabus, prescrições e mandamentos, Jesus exemplificou e propôs a conversão e o despertar interior, a relação íntima e piedosa com Deus,  a oração e a vida justa e  amor ao próximo..
O ensinamento ou filosofia de Jesus (philosophia christi, lhe chamava Erasmo) era realmente o da libertação dos seres e não o da manutenção de tantas servidões como as que já existiam, com a Lei, os Mandamentos e a caterva de prescrições: o reino dos Céus é o mundo espiritual, bem como a centelha divina que está presente no interior de cada ser, a qual deve ser redescoberta no nascer de novo, e aprofundada pelo estudo, o trabalho, o amor e a compaixão  a fim de ser partilhada e comungada com os outros.
Contudo, com o tempo, o Catolicismo romano tornou-se talvez excessivamente o herdeiro do Judaísmo e do imperialismo Romano e só 
aqui e acolá, num ou outro místico, num ou outro ser verdadeiramente santo ou santa, missionário e servidora, é que sobreviveram os verdadeiros ensinamentos e até os estados conscienciais e espirituais de Jesus, e que eram e são os mais elevados da Tradição espiritual da Humanidade, em certa medida também realizados nos Mistérios antigos e no Oriente.
Na história do Cristianismo, o dogmatismo, a violência, a Inquisição, a venda das indulgências, a censura e repressão da liberdade do pensamento, o luxo e o poder do papado ou de certos eclesiásticos representavam a antítese do ensinamento e consciência de Jesus.
A ausência de experiência espiritual ou de ligação íntima à Divindade, o que era o essencial para Jesus, são frequentemente características dos católicos ou evangelistas, para não falarmos de seitas modernas tais como as Testemunhas de Jeová ou da Igreja Universal do Reino de Deus, completamente manipuladas e alienadas em crenças exteriores e dependências de pastores exploradores e ignorantes.  
Crê-se ou acredita-se no que não se compreende ou  é mesmo absurdo, e cumprem-se os preceitos, assiste-se ou participa-se nas cerimónias ou cultos, mas há pouca interiorização ou relação com o Espírito da Verdade que Jesus procurou fazer sentir e revelar aos que o acompanhavam, e que recomendou e prometeu aos que seriam seus discípulos, pois as pessoas sujeitam-se antes à lavagem ao cérebro que ora padres ora sobretudo pastores e vendedores de banha de cobra pregam...
Criaram-se dependências de intermediários, seja dos padres e pastores, mestres, santos e canalizadores, seja das peregrinações, esmolas, indulgências, dízimos, e pouquíssimos conseguiram ou conseguem verdadeiramente unificar, aprofundar e expandir a sua consciência e aproximar-se e intuir o espírito e Deus.
Para isso muito contribui o “creio mesmo sendo absurdo”, e tanta enfabulação e miraculização que se fez no Antigo e no Novo Testamento e que, ainda que com sentidos também simbólicos, acabam por ser lidas e compreendidas literalmente, como se tudo tivesse realizado na realidade física.
E se em criança tal ingenuidade crente é natural, quando adultos já não temos desculpas de nos mantermos com um atestado de menoridade na testa.
Na realidade, à força de tanto se ouvir ou aceitar histórias impossíveis ou  mentiras
piedosas, as pessoas continuam crianças, relaxam a sua lucidez, a corda do arco que deveria buscar o alvo da verdade, tornando-se desistentes ou mesmo hipócritas, divididas entre o que tem de acreditar e o que no fundo já não acreditam, sobretudo no desempoeirado e tão globalizado séc. XXI, na terceira década ainda mais desencantado com tanta manipulação de narrativas oficiais e obrigatórias...
Razão têm então os que querem deitar abaixo esses falsos ídolos, essas concepções absurdas, violentas e limitadas que enxameiam a Bíblia e acabam por desfigurar os mistérios tão insondáveis por si e dificultar a tão necessária auto-realização espiritual. Entre eles conta-se José Saramago, que o tem feito com motivações e modos discutíveis (com todas as limitações da sua personalidade e de uma educação e cultura integral insuficiente), mas inegavelmente meritórios por provocarem o debate, o diálogo, o espanto, a interrogação, a indignação, o riso...
Como comunista, ateu, jornalista e sobretudo como romancista distinguido com o prémio Nobel, a sua participação na constituição da mentalidade colectiva portuguesa não se pode negar ou recusar, ainda que certamente se possa ou deva discutir, como aliás algumas das intervenções nesta polémica deixaram entrever, embora em geral as respostas que se têm ouvido dos seus adversários sejam mais emocionais, pessoais ou demasiado alinhadas ou mesmo patéticas, poucas se elevando às profundezas e alturas das questões que os livros ditos sagrados, as religiões, o espírito e Deus envolvem e exigem...
Não se trata porém de meras patetices, nem do retomar das críticas dos jacobinos do séc. XIX à Igreja o que está patente no livro e na polémica, como alguns disseram, mas uma ousada e divertida crítica ao Deus do Antigo Testamento e que no fundo faz parte de um vasto anseio da Humanidade de tentarmos clarificar e melhorar a nossa concepção de Deus e portanto do ser humano, já que se crê ser ele feito à Sua imagem e semelhança...
Cada vez mais se torna evidente, no séc. XXI da globalização e do desenvolvimento científico, técnico e mediático (ainda que desde 2021 cada vez mais tragicamente manipulado e oprimido), que as religiões terão de deixar de considerar sagrados e inspirados divinamente e logo obrigatórios vários aspectos ultrapassados, infantis, violentos ou absurdos. “Para um Cristianismo mais adulto ou verdadeiro”, poderia ser o lema ou a bandeira da batalha mais urgente que os cristãos e o Papa deveriam empreender, numa visão ecuménica e fraterna, dialogante e complementar com as diversas perspectivas e vivência das religiões, ciências e filosofias.
Assim, qualquer embate com as estruturas e mentalidades erradas e por vezes tão caricaturais e demoníacas das religiões, ou qualquer trabalhador que venha ajudar a deitar abaixo esses papões, é bem-vindo, e é o caso de José Saramago, pois como Jesus já disse «a messe é grande mas os operários são poucos», Lucas 10:2. Claro que devemos saber compreender o que se deve abater ou corrigir, melhorar ou preservar, num trabalho para um colectivo ou gerações sucessivas, e qualquer franco-atirador trará inevitavelmente consigo sempre limitações e poderá ocasionar feridas ou ofensas. Contudo, ainda assim, devemos saber ouvir o "espírito da verdade" soprando de onde quer que venha, diminuindo ou derrubando muros e dogmas, pois, tal como Desidério Erasmo clamou nos prefácios às suas pioneiras edições do Novo Testamento, Jesus queria que a “Filosofia de Cristo”, a sua mensagem libertadora e espiritual, fosse ouvida, vivida e aprofundada por todos.
Caim, de José Saramago, é assim inegavelmente uma divertida e bem imaginada revisitação de algumas histórias de uma personagem dessa imensa manta de retalhos que é o Antigo Testamento e que, na sua maior parte, se presta a grande críticas pela sua violência e fanatismo.
                                             
 De facto, a Bíblia é uma história mal contada, ou se quisermos, um amontoado de histórias, relatos e ensinamentos e mitos, tirados daqui e de acolá (tal como da Mesopotâmia, a Babilónia, a Pérsia e o Egipto), com valores desde os mais violentos e absurdos aos mais sublimes e compassivos. Atribuir contudo a Deus, o que foi produto de gerações sucessivas de homens do Médio Oriente, é um absurdo no séc. XXI. De nada serve chamar à colação os Estudos bíblicos que até alguns portugueses têm realizado nos seus quartos em Jerusalém. Ou reagir pateticamente em nome do respeito que José Saramago deveria ter para com as crenças dos outros. Ou ainda, clamar a exclusividade da Igreja em comentar ou interpretar a Bíblia.
Quer queiramos ou não, o ateu José Saramago trouxe uma pedra valiosa para o templo humano ao divino e para a busca da verdade em Portugal, ao tentar diminuir a alienação de tanta gente causada pela Bíblia (com as suas várias versões...), com tantos absurdos e manipulações, ainda hoje tida como divina, mas frequentemente transparecendo uma concepção tão limitada e violenta de Deus que claramente não era a de Jesus nem será a mais adequada aos nossos dias.
Talvez venha  o dia  em que dentro da Igreja-Assembleia dos crentes ou conhecedores, brote
um movimento de síntese para um Cristianismo adulto, não-violento, espiritual e ecuménico, livre das contradições insanáveis do Antigo Testamento, antes pleno do espírito, da verdade e do amor que foi e é o ensinamento ou Boa Nova, Evangelion, de Jesus, na imagem numa pintura de Bô Yin Râ...
                                                              

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