quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Dos Livros e Bibliotecas em leilão e dispersão. José Vicente da Olissipo, no Palácio da Independência.

Livro de 1699. S. António, orai por nós, ou seja, inspirai-nos e fortalecei-nos...
Um dos momentos em que o amor aos livros mais se pode manifestar e se satisfazer é quando uma biblioteca ou um conjunto de livros vai à praça, ou seja, vai ser leiloada e encontra-se em exposição ao público.
Quando é uma boa biblioteca, ao chegarmos, encontramos espalhados pela sala as obras mais raras ou bem encadernadas, em cima de mesas, nas estantes ou em armários envidraçados e poderemos até ter dificuldades em seguir a ordem numérica dos livros, ou a lista dos que queríamos ver, atraídos por este ou aquele...
O livreiro que leiloa (26 a 28 Outubro, 2015), no Palácio de Independência ao Rossio, o José Vicente, o experimentado fundador da Livraria Olissipo, seleccionou os melhores livros da biblioteca que foi do democrata e bibliófilo Raul Rego, seu amigo, descreve-os sóbria e cuidadosamente no catálogo e expõe-os ao público interessado a preços relativamente acessíveis...
O podermos segurar nas mãos um Pico della Mirandola, um génio do Renascimento, numa impressão quinhentista italiana, no caso a Exposição sobre o Génesis, com um belo frontispício, e ainda que num exemplar muito lavado ou limpo e restaurado, e folhearmo-lo um pouco, é sempre bom...
Não tivemos muito tempo para estar na exposição, dinheiro ainda menos, mas como para ver não se paga, faça-se história e relembrem-se aqui alguns livros que manuseei, por vezes lendo umas linhas ou parágrafos, e acolhi amorosamente, quem sabe absorvendo algumas partículas energéticas que estavam neles, seja provindas do autor, do editor, do gravador ou dos possuidores...
Infelizmente sabemos pouco destas interacções subtis, nem sequer dos livros que nos chamam mais, mas vamos seguindo, abrindo, vendo e lendo mas também sentindo e admirando a encadernação ora na sua qualidade de original, pura, ora pela sua beleza e trabalho com os ferros dourados, ora pelo seu estado bem marcado pelo tempo...
Uma edição dos Emblemas de Saavedra Fajardo, de 1665, de dimensão grande, um in-quarto, mostra-nos alguns emblemas em talha doce de grande beleza e com as suas moralidades fascinantes quanto ao bom governo de si próprio e da res publica.
Uma biografia de S. António bem antiga, ainda do séc. XVII, embora com vários restauros, composta por dezenas de gravuras e algumas mesmo belas, também merece ser contemplada e recolhermos rapidamente o que as imagens nos podem ensinar ou transmitir nos breves momentos do contacto. Peço a um livreiro amigo (esgotada a bateria de máquina de fotografar..) que me fotografe no seu telemóvel uma ou outra, com o santo a abençoar do alto, para que a possa rever e sentir mais tarde.
Folheei rápido os Soldados da Revolução, de Jules Michelet, lido e apreciado por Antero de Quental, prefaciado, traduzido e bem anotado por Fernando Leal, grande amigo de Antero e casado com Guiomar, irmã da minha bisavó, numa edição lisboeta com tela editorial, mas manchada por água, que Raul Rego, bibliófilo, preservou e que eu acabarei por receber...
Um incunábulo pequenino de 1499, o De Immortalitate Animae, Acerca da Imortalidade da Alma, mistério no Renascimento muito estudado, do teólogo francês Guillaume Houppelande, tão frágil quão mimoso na sua letra gótica minúscula, é ainda hoje como que um relicário precioso. Passa contudo rapidamente pelas nossas mãos, olhar e alma, qual visão da procissão do santo Graal, pouco dando para captar algum ensinamento mais luminoso e actuante. Esta obra foi muito lida e reeditada, fazendo talvez par com a mais antiga (1474) e famosa, e bastante mais bela e profunda Theologia Platonica de Immortalitate Animae de Marsilio Ficino.
Uma edição seiscentista do pioneiro livro de emblemas de André Alciato, no qual imagens simbólicas ou alegóricas são acompanhadas de um lema ou mote e de uma explicação ou comentário, é também folheada, com os seus 190 emblemas aos quais se seguem algumas imagens e explicações de árvores.
Das pioneiras descrições das viagens da Índia para Portugal (que eu fiz duas vezes, em bons tempos quando se podia ir por terra e conviver admiravelmente com todos os povos e religiões), encontro e folheio A Relação do Novo Caminho que fez... ou seja, uma viagem de Goa a Portugal, passando pela Pérsia, do Frei Manuel Godinho, de 1665, mas que "fisicamente" está muito cingida, ao ter sido excessivamente aparada aquando da encadernação.
As muitas obras de D. Francisco Manuel de Melo; os Desmayos da Alma,  a primeira obra a ser impressa em Vila Viçosa; uma parte do Alcorão manuscrita e bem iluminada, numa encadernação muito concentrada e original. Por fim, um selo em lacre real, num manuscrito assinado por D. João III, ainda é segurado na mão à despedida...
Quanto ao mistério da presença ou não nestas almoedas dos antigos donos das bibliotecas já partidos para o além, ele é certamente um arcano  que só um bom clarividente poderia deslindar...
Como também os elos que poderá sentir quem compra e leva algumas das obras, de certo modo transmitidas de autor e possuidores ou mesmo anotadores para outro leitor-usufruidor e investigador...
Que sejam sempre frutuosas as obras e as suas leituras, fazendo desabrochar o nosso ser espiritual e a sua comunhão com a Sabedoria Divina...

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