domingo, 19 de outubro de 2014

Marsilio Ficino (1433-1499), vida e ensinamentos. Com extractos da sua valiosa correspondência.

Dia de aniversário de Marsilio Ficino, nascido em 19-X-1433 e partido da Terra em 1-X-1499, em Florença, mas sempre vivo nos corações ou nas almas dos seus amigos, admiradores, condiscípulos, ou simples peregrinos e espirituais...
                               
Foi já no Outono de 1433, em 19 de Outubro,  que nasceu em Figline, no vale do rio Arno, Marsilio Ficino, filho de Diotifeci d'Agnolo, médico de Cosimo de Medici, a família regente de Florença, e de uma mãe bastante intuitiva ou mesmo clarividente. Foi muito dado ao studium e veio a tornar-se um pensador fulcral no Humanismo dos séculos XV e XVI, pois, por encomenda-missão em 1462 de Cosimo de Medici, foi o primeiro tradutor do grego para o latim, então a língua culta da Europa, das obras completas de Platão e dos textos de sabedoria espiritual da Antiguidade designados por Corpo Hermético, a que se seguiram as obras de Plotino, com prefácios e comentários valiosos.
Tornou-se, com Pico della Mirandola e Erasmo, um dos líderes do Humanismo mais espiritual e abrangente do Renascimento, sendo o animador da célebre Academia Platónica de Florença, mantida por Cosme e Lourenço de Medici, que se reunia em debates filosóficos e espirituais valiosos (tendo o seu convívio e banquete mais importante a 7 de Novembro, dia do nascimento e desencarnação de Platão, de quem um busto pontificava com uma lâmpada de azeite sempre acesa) e nos quais participaram artistas e pensadores importantes, como Pico della Mirandola, Cristoforo Landino, Poliziano, Lorenzo de Medici, Francisco Cattani da Diaceto, Boticelli e Michelangelo.
                               
                               A villa de Careggi, casa da musas, academia platónica.
  Foi da sua casa-domínio de Careggi, onde se reunia a Academia, que deixou a Terra no dealbar do século XVI. As suas melhores biografias são as de Giovanni de Corsi, que nasceu em 1472, e foi publicada em 1560, a de Arnaldo della Torre, sobre a Academia Platónica, de 1902, e a de Raymond Marcel, impressa em Paris, Les Belles Lettres, 1958, devendo ainda mencionar-se os estudos de Paul Oskar Kristeller, Michael J. B. Allen, Jean Claude Margolin, Marc Fumaroli, Cesare Vasoli, Patrizia Castelli, Christopher Celenza e Stéphane Toussaint, com alguns destes tendo eu ainda dialogado.
                                         
Céu natal de Marsilio Ficino, muito dado à investigação das possíveis correspondências do Macrocosmos e do Microcosmos.

Foi Marsilio Ficino de certo modo impulsionador ou inspirador de artistas como Botticeli, Ghirlandaio, Fillipini Luppi e Michelangelo e, com Pico della Mirandola, Poliziano, Cristoforo Landini, Erasmo, Thomas More, John Colet, Lefèvre d’Étaples, Agostino Steuco e Giordano Bruno,  autor de obras de grande sabedoria, entre elas se destacando, além dos comentários aos grandes textos Platónicos (nomeadamente o Parménides e o Banquete), a Theologia Platonica, o De Sole e o De Triplice Vita, este incluindo três tratados: Da Vida, Da Vida Longa, e Da obtenção da Vida dos Céus, ou se quisermos Da vida celestial reunida. Tanto estudara a via aristotélica como a platónica, nessa época numa certa luta entre os seus proponentes, equilibrando-as, embora sentisse que queria aprofundar mais a via imaginal e espiritual platónica, a qual, até ao Concílio de Florença de 1439 e à queda de Constantinopla (1453), com a consequente emigração dos seus sábios para o Ocidente e depois, com os manuscritos trazidos por eles, a sua tradução da Obra de Platão completa, era pouco acessível e menosprezada. 
Estudara com vários preceptores e frequentara o Studio ou universidade fiorentina, tendo sido mesmo professor, pelo menos no ano de 1466. Mas Platão e os textos espirituais das diversas tradições a que acedia propulsionaram-no para uma síntese ousada e perigosa do paganismo com o cristianismo, da racionalidade com a espiritualidade e até a uma magia de operações e orações assentes em correspondências do microcosmos e do macrocosmos, nomeadamente as posições dos astros nos céus.
                       
Marsilio Ficino, Pico della Mirandola e Angelo Poliziano, por Cosimo Rosselli. Chiesa de S. Ambrogio, Florença, 1486.
Médico como o pai, mas clérigo na igreja de santa Maria Magiore e, mais ainda, filósofo e espiritualista, desenvolveu a ideia da continuidade da revelação divina, desde os tempos primordiais, a chamada Prisca Teologia, reconhecendo Hermes Trimegisto, Zoroastro, Orfeu e Pitágoras como elos da mesma transmissão divina que a Cristã, o que na altura de um certo zelo de exclusividade por parte da Igreja Católico (o qual teve por exemplo consequências trágicas com o mais que sábio Giordano Bruno) era muito pioneiro e ousado, embora se apoiasse em padres da Igreja, tal como Lactâncio, nesse reconhecimento nos ditos filósofos pagãos da sabedoria divina perene.
Provou racionalmente a imortalidade da alma, se é que assim se pode dizer, na sua famosa Teologia Platónica da imortalidade da alma, e os seus comentários às obras que traduziu de Platão e Plotino, e em espacial ao Banquete de Platão granjearam-lhe admiração ao longo dos séculos pela sublimidade da sua mente, coração e alma e pela forte aspiração ao Divino, ao Uno Primordial.
Aí afirma sobre caracterização trina da Divindade: "é denominada Boa porque é o acto (e autor) e fortificador de tudo. Bela porque vivifica, alegra, adoça e excita. Verdade, porque alicia para os objectos que devem ser conhecidos as três forças da alma: a mente, a vista e o ouvido [...]
Não sem causa os antigo Teólogos puseram a Bondade no centro, e a Beleza na circunferência. A Bondade num centro único e a beleza em quatro círculos. O centro uno de tudo é Deus, e os quatro círculos que o rodeiam são o espírito, a alma, a natureza, a matéria. O espírito ou mente angélica é o círculo estável. A alma move-se por si. A Natureza move-se a partir do outro e no outro.”
Marsilio Ficino, quando morre de velhice ou de cólicas, como afirma o seu biógrafo quinhentista Giovanni da Corsi, deixa os seus livros e a propriedade de Caregi ao seu afilhado, filho do seu irmão Querubino, o qual será o editor da sua vasta e riquíssima correspondência epistolar, que ainda vai hoje sendo traduzida, sobretudo em inglês. E certamente merece ser lida e relida com amor e discernimento.

                                         
Oiçamo-lo numa carta a um amigo professor: «Mostra-te um exemplo de boa conduta. Pureza de vida engendra reverência para com o ensinamento. Os jovens seguem facilmente o exemplo dos mais velhos. Os que corrompem um jovem, ou de facto a mente de alguém, quer por palavras ou por conduta, devem ser considerados culpados de sacrilégio. Finalmente, age de acordo com Pitágoras e Apolónio de Alabanda que, na tradição dos filósofos Indianos, não admitiam à sua disciplina nenhum jovem que não fosse de nascimento luminoso e de educação boa. Pois não está certo que as Musas se tornem ministras ou instrumentos de iniquidade».
                               
Marsilio Ficino, Cristoforo Landino, Angelo Poliziano e Demetrios Chalkondyles, por Domenico Ghirlandaio. Capela de santa Maria Novella, Florença.
Ou noutra carta, enviada a Niccolo degli Albizzi, tão lúcida quanto profundamente sábia e que foi intitulada Exhortatio ad scientiam:
«Ouviste aquele provérbio, meu Nicolau, “nada mais doce que o lucro”? Mas quem lucra? Aquele que compreendeu o que é seu no futuro, pois nosso é o que sabemos, tudo o mais é verdadeiramente da fortuna [ou sorte].
Invejam os homúnculos os ricos, dos quais é a arca e não a alma a riqueza [cuja riqueza está na arca e não na alma].
Tu emula os homens doutos e bons, cuja mente é semelhante a Deus. Admoesta os teus condiscípulos a terem cuidado com Cila e Caribide, isto é, com a volúpia enganadora e a inflamação pestífera da mente, antes opinando que sabendo.
Que eles se lembrem que, um dia, a suma volúpia haverá de estar na parte suprema da alma, naquele tesouro da verdade suprema, quando eles desprezarem as sombras inânimes da volúpia pela graça do conhecimento.
A árvore do conhecimento, mesmo se virmos que tem raízes amargas, todavia produz frutos suavíssimos. Que eles se lembrem além disso que nunca superfluamente em excesso se torna o que nunca se torna suficiente.
Que eles se lembrem além disso que nunca se torna bastante o que nunca se tornar em excesso. Ainda não aprendeu suficiente quem ainda duvida de qualquer coisa porém duvidamos enquanto vivemos. Assim é de nós aprender por tanto tempo quanto formos vivendo, imitando aquele sábio Sólon que, estando a morrer, brilhava aprendendo algo, visto que se alimentava pelo sustento da verdade e para quem a morte não era senão revivescer.
Não pode morrer quem vive [respira] de alimento imortal. Além disso, Sócrates foi o primeiro a ser chamado do mais sábio de todos por Apolo, porque foi o primeiro a pregar publicamente que nada sabia. Mandava Pitágoras os seus discípulos verem-se ao espelho não à luz de uma luzerna, mas à luz do sol. O que é porém a luz da luzerna senão uma alma até aqui pouco erudita? O que é a luz do sol senão a mente que é muito erudita?
Portanto quem lhe apeteça especular acerca da figura da sua alma não a compare com indoutos, mas pelo contrário com doutíssimos. Assim discernirá claro quanto foi o lucro, quanto falta. Ao sustentar a mente devemos imitar os gulosos e os avaros, que sempre tem a mente intenta no que ainda resta. O que há mais? O Mestre da Vida diz: «Não é digno de prémio aquele que mete a mão ao arado e olha para trás». Ouviste aquela que de ser vivente em estátua foi transformada. Ouviste ainda como Orfeu perdeu nessa ocasião, em que olhou para trás, Eurídice, isto é, a profundidade do seu juízo. Cobarde e vão é o investigador que regride e não progride. Guarda-te em Deus [Vale]...» (Opera. 1641. T. 1º, p.605).
Giovanni de Corsi, nascido em 1472, e que publicou a biografia de Marsilio Ficino em 1560, foi discípulo de Francisco Cattani da Diaceto, grande amigo de Ficino, o qual escreveu no prefácio do seu De Pulchro algo que aflora aspectos sagrados do ensinamento platónico e neo-platónico, a comunicação profunda e do interior entre o ser humano, o seu anjo e o seu mestre: "Tudo o que nós somos, se somos alguma coisa, devemo-lo a Ficino. Marsilio, portanto, como nosso daimon (génio, anjo, mestre) familiar, fala sobre o belo através da nossa boca, o que é conforme à Academia". Na verdade, a sua aproximação ao mistério e ao Ser divino é das melhores que o género humano gerou...
Tocando harpa, Marsilio Ficino conheceu, tal como a tradição Indiana, a Persa e a Grega ensinam, o Sermo, Verbo ou Shabda interno: «A alma recebe as mais doces harmonias e números através dos ouvidos, e por estes ecos é lembrada e desperta para a música divina que pode ser ouvida pelo sentido mais subtil e pela mais penetrante mente». Eis um pequeno contributo para desafio perene de conseguirmos ouvir a tão subtil música do som das partículas e esferas...
E por isso está representado no seu busto mortuário, dentro da igreja florentina de Santa Maria Maior, na parede meridional, tocando harpa, sugerindo que devemos afinar as frequências da almas e intensificá-las (tocando, cantando, orando, meditando e agindo bem), para os níveis mais elevados delas próprias e da Anima Mundi, e assim podermos cada um reconhecer-se como «raio eterno do Sol Divino» e não nos dispersarmos ou envolvermos em tanta alienação e e lixo dos meios de comunicação, de modo a que possamos fortificar o nosso corpo espiritual e sentir mais a ligação com os mestres, os anjos e a Divindade e agir pelo bem da Humanidade...
                                 

2 comentários:

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Na wb há já muita informação sobre Marsilio Ficino e algumas páginas mesmo boas, de bons estudiosos...

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças muitas Inês. Só hoje vi sua apreciação, ao rever o artigo. Votos luminosos...