sábado, 5 de julho de 2014

Antero de Quental, o soneto "Nocturno". Da ânsia idealista à prática nocturna da recepção e visão da Luz.

                                                      ANTERO DE QUENTAL
                                             Poeta e filósofo, discípulo e mestre de Portugal.
  É sempre bom revisitar com amor Antero de Quental e a sua espiritualidade e discernir as pistas e veredas demandadas,  o que pensou, poetizou, intuiu ou desvendou, e introduzi-las de novo em reflexão, meditação e acção, não só para que a Tradição Cultural e Espiritual Portuguesa continue a circular e a revivificar-se, como para,  no  aprofundamentos das suas questões e descobrimentos, limitações e realizações, podermos melhorar, evoluir, clarificar...
Consultando um exemplar dos Sonetos Completos, a 1º edição, da livraria portuense de Lopes & C.ª - Editores, sita na Rua do Almada, 123, datada de 1886, com a particularidade de ter ao alto da folha de guarda, onde está impressa a meio a palavra Sonetos, uma dedicatória manuscrita que reza assim: «Ao seu querido amigo António de Azevedo Castello Branco off. O autor», deveremos desde logo destacar a humildade de Antero, que nem sequer pôs o seu nome embora se confesse amigo querido, e de quem dirá tão bela e musicalmente numa carta do Verão de 1866 ser «voz conhecida e uma das que mais soa no tom da minha».
Ora neste exemplar, de certo modo abençoado pelas mãos dos dois grandes amigos (e que carga psico-espiritual não terá o livro, visível a uma alma mais clarividente...) afloremos as duas primeiras quadras e o primeiro terceto do soneto Nocturno, gerado na sua adolescência, no ciclo poético de 1862-1866, onde encontramos alguns  traços recorrentes no nosso poeta filósofo, nomeadamente  ao dirigir-se ao espírito nocturno que passa e pedindo-lhe que diminua os tumultos do seu coração:
 
"Espírito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a Lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento...

Como um canto longínquo - triste e lento-
Que voga e subtilmente se insinua,
Sobre o meu coração que tumultua,
Tu vestes pouco a pouco o esquecimento...
 
A ti confio o sonho em que me leva
Um instinto de luz, rompendo a treva,
Buscando, entre visões, o eterno bem.”
 
Vemos então Antero de Quental sentindo-se ou considerando-se levado por um instinto ou aspiração de luz e que, ajudado por um tipo de Génio da noite, ou talvez o que do Espírito ou do Divino ele admite ou intui manifestar-se nocturnamente (seguindo simbolizações arquétipas mas também operativas da Antiguidade e do Romantismo), pede para que o ajude a intensificar e guiar o seu instinto de  Luz de modo a que este rompa e vença as trevas na busca, que ele afirma prosseguir, por entre visões, do eterno Bem.
Refere assim uma impulsão, uma aspiração de luz, a agir em si, em busca do Bem eterno, provavelmente sentido de modo indefinido e pensado mais até como a Verdade ou o Absoluto  do que a Divindade ou a Beatitude, pois naquelas linhas menos deístas e íntimas, e mais filosóficas, ele avançou poetizando. Todavia, o facto do génio se insinuar na sua alma como um som triste e como esquecimento pode apontar também para o Amor, e portanto para uma desilusão amorosa na realidade das relações humanas e da qual Antero se vai recompondo ou ressuscitando, guiado por esse instinto ou aspiração do Ideal, da Luz
E podemos perguntar, e nós, temos  algo deste instinto ou aspiração de luz em acção viva? Cultivamo-lo? Está no nosso coração vivo? E em que direcção? A Divindade ou Deus, a Fonte primordial, sob qualquer concepção, nome ou forma, é admitida, desejada, meditada, sentida, adorada, invocada, ou apenas na busca de satisfação em superficialidades da moderna sociedade?
 Quando poderemos dizer que estamos mesmo a buscar o Eterno Bem, seja em  teorias e meditações ou acções e abnegações?
E o que é o eterno Bem para nós, como o sentimos, pensamos e desejamos?  Amor, Bondade, Sabedoria, Confiança, Harmonia, Felicidade?
O que estamos a fazer para o encontrar, para o realizar, para o cumprir? 
Onde o sentimos mais ou quando?
O que quer o Eterno Bem de nós, como quis de Antero? - 
Será que compreendemos, encontramos, vivemos e partilhamos algo desse Bem maior ou supremo? 
O que estamos a fazer verdadeiramente pelo advento do perene ou supremo Bem? E com que pessoas e grupos, já que a união faz a força, tal partilha acontece, por vezes por afinidades que desconhecemos? 
Lembremo-nos de tantas cartas fabulosas de Antero nas quais essa fraternidade de poetas, de idealistas, de livres pensadores, de iniciados e de místicos foi por ele invocada, sentida e afirmada, desejando até que houvesse uma pequeno grupo comunitário, a Ordem dos Mateiros...
Ora, como os instintos satisfazem-se em actos, interroguemo-nos se assim como diariamente satisfazemos o instinto de sobrevivência física pela alimentação, mais ou menos sobriamente, mais ou menos biologicamente, também o faremos com o instinto-aspiração à luz e à ligação ao supremo Bem, seja que o sintamos mais como Bondade, Amor, Felicidade, Harmonia,  Absoluto ou mesmo como Deus ou Divindade?
Será que apenas satisfazemos tal necessidade alegrando-nos quando está sol, ou a vida nos corre bem, e olvidemos constantemente a aspiração à Luz divina, que a oração, a meditação e a contemplação chamam e trabalham?
Será que nos deslumbramos com os fogos de artifício, ou as luzes das ribaltas fúteis ou mesmo alienantes e degradantes, e pouco procuramos a Luz subtil e interior, e as suas visões, mesmo que fugazes, como Antero parece dar a entender com o "entre visões"?
Será que fazemos os sacrifícios - que significa sacer-facere, fazer sagrado, pleno, transparente, ou seja acolhedor e transmissor do espírito divino que é fundamentalmente amor, sabedoria, paz e alegria -, cada momento, ou pelos menos múltiplos momentos, nomeadamente com os estudos,  diálogos, amizades, orações, contemplações e meditações que proporcionam uma melhor harmoniosa ligação ao Bem, à Justiça, à Felicidade, à Verdade?
O instinto da Luz significa tanto tornar-nos mais luminosos,  pelos nossos actos, sentimentos e pensamentos, tais como querer saber e conhecer mais a Fonte da Luz, que é o eterno Bem, como despertarmos mais a Luz que está em nós e exprimi-la criativamente e em esforços que vençam a inércia, a dor, o desânimo, os obstáculos, as tendências materializantes ou egoístas, as dispersões, os medos, estes provindo muito de manipulações dos órgãos de comunicação e dos grupos de pressão que os controla, Isto significa dissipar trevas, não nos deixarmos envolver e enfraquecer por elas, algo cada vez mais necessário nesta terceira década do séc. XXI.
       Fresco florentino com Marsilio Ficino, Pico della Mirandola e Angelo Poliziano...
 
Sem termos forçosamente de estudar as teorias platónicas e neo-platónicas, muito desenvolvidas no Renascimento com grandes almas, tais como Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Girolamo Benivieni, Giordano Bruno, Leão Hebreu, e que falam da procissão ou emanação da Luz amorosa criadora, e que atrai a si, depois de circular, maior plenitude de Amor, conforme a imagem simbólica das Três Graças (a que dá, a que recebe e a que retorna), devemos contudo valorizar o culto da Luz, o assumir o instinto e aspiração  a ela,  e cientes de que tal implica sobretudo tentarmos merecê-la em nós, trazê-la ou acolhê-la na nossa consciência e alma e intensificá-la nas meditações e orações, palavras e actos, para assim fortificarmos os nossos corpos físico, psíquico e espiritual...
  No fundo, trabalhar criativa e adequada a substância potencial anímica que possuímos, da qual  podemos mesmo dizer que dela temos o nosso ser, pois a nossa essência e ligações mais vitais e perenes são as luminosas e amorosas, e são recebidas ou entretecidas durante as nossas aberturas de aprendizagens, investigações, reflexões, diálogos, meditações, contemplações e acções mais criativas, benéficas, espirituais...
Estava bem consciente disto Antero de Quental, dominava ele bem relativamente a psique, a sua interioridade, até conseguir ver interiormente a Luz? Talvez, após a fulgurância e estado de graça da sua juventude, não tenha estabilizado razoavelmente senão na chamada "década dourada" passada em Vila do Conde, a partir de 1881...
Vira ou assumira as asas do Anjo nele, tanto mais que o Génio era, na Antiguidade pré-cristã, o Anjo, e no Romantismo, no qual Antero jovem ainda haure forças, muitos o cultivaram?
A resposta no terceto final é só promissora, a febre ou aspiração realizada: 

"E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de Ideal, que me consome,
Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém!"
 
 
 Antero do Quental sente sobretudo a febre do Ideal, que o consome. E sabemos como na vida acabou por não bater tanto as asas como desejara, realizara e sonhara, na pujança juvenil, em alguns aspectos da sua vida.
O ideal social de justiça e fraternidade, amor e conhecimento,  certamente  abrasou sempre a vida dum ser bom, "sábio que era também um santo", na feliz expressão duma mulher admiradora do poeta-filósofo e que Eça de Queiroz popularizou magistralmente no seu contributo para o In Memoriam de Antero
Mas conseguiu ele mais que ser abrasado e consumido pela febre do Ideal que ele próprio consideraria em certos aspectos como um simples fogo juvenil, já que não atingiu a estabilidade da satisfação de realizar essa febre de ideal, seja na verdade, na justiça, no conhecimento do espírito e na ligação ao Divino? Talvez em alguns momentos, ou com alguns amigos, ou em alguns escritos...
Como equilibrar os altos ideais e utopias com as influências ou quase exigências da sociedade entorpecedora e enleadora, na época ainda tão conservadora e provinciana, face aos subtis e elevados níveis idealizados socialmente, afectivamente, religiosamente, metafisicamente?
Eis a questão que há que pôr e repor constantemente nas nossas vidas, nomeadamente ao ouvirmos e estudarmos Antero de Quental nas cartas, sonetos e textos de prosa, tanto mais que, como o soneto indica isso, era um "mal" do qual não se anestesiava e que portanto o consumia....
Certamente podemos afirmar que Antero de Quental procurou, sentiu e teorizou o caminho do Espírito, seja na sua procura de unir o transcendentalismo e o imanentismo espiritual, ou o budismo e uma doutrina espiritualista proveniente do Ocidente que coroasse o naturalismo tanto helénico como moderno, este já com os seus grandes avanços científicos, ou ainda na sua percepção de um panpsiquismo que substanciava o mundo como sua alma, a anima mundi dos antigos estóicos, e que permitia uma comunhão anímica ou intuitiva entre os espíritos, acima das separações do plano físico...
Todavia, porque a sua vida pessoal, ou mesmo personalidade, não suportasse os embates e sobretudo desilusões da vida, devido à estrutura psico-corporal e saúde frágil, as revelações e fulgurações que teve não foram suficientes para conseguirem-no iluminar nem para lhe dar a estabilidade duma prática diária harmoniosa (ou tendencialmente) nos seus vários níveis, tais: alimentar, vital, rítmico, emocional, mental, social, científico, filosófico e espiritual. Ainda que no tempo de estudante tudo fosse vigor e génio e já no findar da sua vida, junto ao mar, em Vila de Conde, tivesse  momentos de grande serenidade e felicidade, conseguindo tutelar as duas crianças, Beatriz e Albertina, do seu grande amigo Germano Vieira Meireles e escrever bem.
Muito gratos devemos estar nós hoje em dia, já que podemos bem mais facilmente obter e realizar as almejadas sínteses entre o espírito imanente, uma vida justa e livre e a aspiração, abertura e comunhão ao Alto e ao Transcendente a que se chega pelo imanente, assente em actos e pensamentos justos e harmoniosos. Daí a nossa responsabilidade de agradecer, completar e de continuar Antero de Quental, elos da mesma tradição cultural e espiritual portuguesa...
Ora neste soneto Nocturno dirige-se  no princípio ao Espírito "Filho esquivo da noite que flutua" ou que passa, e no fim já ao "Génio da Noite", o único ser que o entende, o que indica de certo modo um avanço interior de força íntima realizada.
Génio da Noite, neste soneto, em Antero de Quental, que tanto poderá ser o seu Anjo da Guarda invocado de noite, como a Senhora antiquíssima da Noite, sentida ou evocada poeticamente por Fernando Pessoa e Teixeira Pascoaes, e tantos cultores portugueses seja marianos, seja da potência anímico-espiritual que de noite, sobretudo nos poetas, artistas e espirituais, se torna mais presente e sensível e nos apela a não nos deixarmos adormecer mas antes despertar, erguer, ardermos, criarmos, amarmos, adorarmos, sermos.
O que podemos fazer não dormindo a noite toda, mas meditando, orando numa parte dela e eventualmente recebendo os sinais auspiciosos. Ora Antero de algum modo intui, com as suas limitações, já que de facto  o Espírito à noite pode ser melhor demandado, aproximado, sentido ou mesmo ouvido, dizendo-nos Antero, mais ou menos literariamente ou sentidamente, que ele o entende e lhe acalma o tumulto, agitação ou mal do seu coração e alma.
 Procuremos então o Espírito que não passa mas que fica e é, e não só nocturno nem diurno, mas que inclui os pares de opostos, as dores e alegrias, unificando-nos e que tende a unificar-nos, silenciar-nos e religar-nos com os mestres e o Ser Divino, se a tal aspiramos e laboramos.
Trabalhemos pois mais conscientemente a Luz imanente e as energias divinas que nos chegam, sobretudo pela leitura e a escrita, a doação e a criação, o serviço e o trabalho, o discernimento lúcido e a compaixão, a meditação e a oração, a contemplação e a palavra desperta, já que proporcionam, ao serem bem feitas ou conscientemente realizadas, o desabrochar da nossa essência lúcida, sábia, amorosa e o seu desenvolvimento luminoso e imortalizante.
“Vós sois a Luz do mundo”, disse Jesus, procurando e incitando a estabelecer-nos mais na nossa essência real luminosa...
“Eu sou o Espírito, luminoso”. Aham Brahamasmi, Eu sou o Espírito Divino, dirão mesmo os místicos indianos...
 Que estas palavras cheguem até a todos amigos de Antero, peregrinos ou peregrinas no Caminho, que Antero de Quental  percorreu e trilhou com dificuldades  e pioneiramente em Portugal enquanto poeta-filósofo do Amor e da Morte, do Transcendente e do Imanente.
 Sim, importará realçar e clarificar sempre o que de mais valioso ou pioneiro tem Antero de Quental na história do pensamento e sentimento espiritual laico em Portugal, seja no seu interesse pela Sabedoria do Oriente seja na sua demanda intensa de uma síntese entre a ciência, a religião, a ética e a espiritualidade e de um acesso ao centro e voz da Consciência. E ainda na sua aspiração a uma Ordem dos Mateiros, a qual foi depois continuado teoricamente  em parte por Fernando Pessoa, nomeadamente com o seu Talent de bien faire, duma Ordem de Cristo ou Templária que ele sonhou, e que provinha do Infante D. Henrique. 
Graças a mais alguns cultores e cultoras da Tradição Espiritual Portuguesa, podemos observar que Caminho hoje em dia está mais conhecido e difundido, embora também em geral superficialmente, com muita mistificação e conteúdos fracos, inventados e muitos pseudo-instrutores, explorando comercialmente ou patranhizando com reincarnações, merkabas, canalizações, mestres ascensos, etc...
Saibamos continuar a demanda e ir mais fundo e alto na recepção e vivência da Luz espiritual que Antero de Quental por vezes sentiu e  respirou, como o soneto Nocturno mostra, persistentemente durante o silêncio da noite quando a nossa mente se acalma e a nossa aspiração pode arder mais verticalmente, e assim nos abrirmos mais às inspirações e logo bênçãos inspiradoras e transformadoras que possamos merecer...
Pintura da Luz nocturna e subtil pelo  mestre alemão Bô Yin Râ, boa para contemplação operativa.

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