sábado, 2 de novembro de 2013

A Gnose em Fernando Pessoa.... Fernando Pessoa, cristão gnóstico...

                     Da GNOSE em FERNANDO PESSOA... 
Uma tradição imemorial, provinda de reminiscência, intuição, clarividência ou revelação do Alto (de mestres, anjos), diz-nos que o ser humano na sua essência é um espírito, uma centelha de origem divina emanada do Ser e mundo Divino, tombada ou aprisionada num corpo animal, no mundo terreno, e que a sua missão principal é recuperar, ou redimir desse estado de amnésia e ignorância, a identificação espiritual e a ligação divina. E, após a morte física, retornar, no corpo glorioso ou transfigurado, a tal plenitude, ao pleroma, o que se consegue, desabrocha ou se desvenda pela vida justa e o auto-conhecimento interno, que é o reconhecimento e vivência do Ser real e espiritual…
                                        
Ora desta descida ou queda do mundo espiritual para o material e terreno Fernando  Pessoa tinha consciência e aludiu a ela frequentemente: («Aconteceu-me do alto do infinito// esta vida (...) Passos da Cruz, na revista Centauro, 1916, ou «Quando despertos deste sono, a vida/ Soubermos o que somos, e o que foi/ Essa queda até ao Corpo, esta descida/ Até à Noite que nos a alma obstrui», ou ainda, num belo texto de reminiscência espiritual, «súbitas confissões de outro que eu fui outrora/ Antes da vida, e viu Deus, e eu não o sou agora», afirmação que contudo poderemos questionar se foi mesmo experiência ou mais imaginação poética...
A palavra grega gnosis – conhecimento, assinala tanto o meio ou caminho como o objectivo ou estado auto-consciencial espiritual e, ao longo dos séculos, sempre houve a Gnose, assumida ora como o conhecimento iluminado da Verdade e da Unidade Divina e Espiritual, ora como uma via ou ciência iniciática, inspirada, libertadora, salvífica, capaz de despertar e iluminar, através da preparação e purificação gradual ou, em certos casos, numa revelação súbita.
Os Mistérios da Antiguidade, o discipulado de mestre a discípulo, as práticas ascéticas, devocionais, meditativas e contemplativas e a auto-consciencialização perseverante são os meios principais para este reconhecimento ígneo e etéreo acontecer em nós, e conservar-se, e o Gnóstico é  quem trabalha e mantém a tomada de conhecimento de si mesmo unido ao Espírito ou ainda à Divindade, ao Pai, ao Um, à Unidade, ao Princípio donde emanou….
Por Gnosticismo entende-se em especial os movimentos religiosos e salvíficos que, do I séc. d. C. em diante, e, mais especificamente no Médio Oriente e na Ásia Menor, se desenvolveram por vivência interior e ensinamentos, apoiados na sabedoria devedora do Helenismo e do Neoplatonismo,  bem como nas influências de ambientes, cultos e mistérios Orientais, a que se acrescenta por fim os ensinamentos directos ou indirectos de Jesus. 
Com efeito, se muitos destes movimentos se desenvolveram  a partir da Gnose mais pura, a do conhecimento directo espiritual, inefável, não mental ou discursivo, não de mera crença mas de visão e realização interior, também em alguns casos  filiavam-se ou apoiavam-se no ensinamento directo de Jesus ou no de mestres e seitas sírias e judaicas, enquanto outros ligavam-se mais à mística grega (com origens órficas e pitagóricas) e ao Neoplatonismo bem como ainda às influências dos ambientes ecuménicos de cultos, mistérios e iniciações do Egipto, especialmente em Alexandria.

 Alexandria e Médio Oriente que acolhiam também influências da Índia, de onde se conheciam então os gimnosofistas, desde o tempo Alexandre Magno,  e da qual o milenar Jnana Yoga, da Vedanta, é vivido ainda no séc. XX por um mestre Ramana Maharishi (na fotografia), num exemplo da gnose da não-dualidade,  e ensinamentos do Irão zoroástrico dualista e dos mistérios de Mitra, filosofia e sabedoria persa muito bem estudada no séc. XX por Henry Corbin, sobretudo no sufismo iraniano, Avicena, Sohrawardi e o Islão Shiita. Havia portanto uma Gnose forte na tradição Indo-europeia  embora encontremos  noutros povos e suas espiritualidades  algumas dessas características.  
Com efeito, sem doutrinas muito fixas ou rígidas, certos traços são contudo em geral característicos dos gnostikoi, tais como 1º, os dualismos, o Deus mau do Antigo Testamento e o Bom de Jesus (ou o Deus Desconhecido), o espírito e o corpo, o mundo espiritual e o material (repudiado ou contestado em geral), os filhos da luz e os das trevas, o redentor-salvador e o mundo ou a humanidade em perdição. 2º, complexos e imaginalmente criativos mitos ou cosmogéneses de emanações sucessivas dos Éons, Espíritos, Deuses ou Anjos. 3º, a desvalorização das hierarquias externas, dos rituais e sacramentos, ainda que os houvesse, por exemplo, nos Cristãos Gnósticos denominados valentinianos. 4º, desvalorização da moralidade externa (donde haver tanto a sublimação sexual como a licenciosidade) e das noções de bem e de mal, tão questionadas por Fernando    Pessoa, com a tão reiterada regra, clamada por S. Paulo, Rabelais e Aleister Crowley, "faz o que queres é a lei". 5º, ampla liberdade criativa e interpretativa das doutrinas, textos e experiências, tanto mais que o que se procurava era o transcender a ignorância, a ilusão, o emprisionamento. Na tradição indiana, Kaivalya e Moksha, eram o nome para essa libertação.
Estas são as principais características dos Gnósticos, vivendo baseados mais no auto-conhecimento espiritual, na revelação do Espírito ou do Mestre, e no desprendimento do mundo e da ilusão egóica, tudo desaguando num estado psico-espiritual ou realização libertadora, beatífica, frequentemente designado como o Repouso. "Um entre mil", dizia-se, do conhecedor do espírito luminoso, do Gnóstico unido ou mesmo identificado ao Espírito supra-pessoal, Um... 
Embora houvesse diversas tendências e características  nos Gnósticos, e S. Epifânio no começo do séc. V nomeia cerca de 30 seitas, vemos que Fernando  Pessoa coincidia com eles em vários pontos, nomeadamente no dualismo do espírito e matéria, na desvalorização deste mundo, onde o mal está tão presente («o Príncipe  deste mundo, como todos sabemos, é Satan, porque este mundo é o inferno de que falam», escreve), numa certa ascese e no menosprezo do seu Demiurgo ou Criador, identificado constantemente com o Deus inferior do Antigo Testamento, ignorante e limitado.  
Também a distinção entre o mestre Jesus  e o Logos ou Cristo Cósmico que nele se manifestara mais plenamente, é comum a Fernando Pessoa e aos Gnósticos, tal  como a da consciencialização iluminativa no autoconhecimento da centelha ou pérola perdida (referida por exemplo num fragmento que publiquei in Rosea Cruz, como "o encontro da alma consigo mesmo"), a qual a desprende ou liberta das ilusões e sonhos do oceano da existência terrena, o samsara hindu, ou a roda da vida medieval e do Tarot, após a sua queda através dos vários planos ou mundos subtis até este.
Em Fernando Pessoa vamos encontrar ao longo dos anos dezenas de textos nestes sentidos (por exemplo:«O Criador do Mundo não é o Criador da Realidade: em outras palavras, não é o Deus inefável, mas um Deus-homem ou Homem-Deus, análogo a nós mesmo mas a nós superior», que justificam plenamente a sua tentativa de união complementar do paganismo e do cristianismo e por fim a sua afirmação de cristão gnóstico.
 A Igreja Cristã nascente, ao colar ou unir a Lei e o Jeová do Antigo Testamento (concepção esta de Deus frequentemente criticada ou até ridicularizada por Fernando Pessoa..) à graça do Amor e Conhecimento libertadores da Boa Nova ou Evangelho de Jesus, ainda que tendo conservado uma certa Gnose, bem patente em Orígenes e Clemente de Alexandria, acabou por opor-se forte e dogmaticamente às pequenas mas numerosas igrejas ou grupos gnósticos, acabando por levar à destruição de quase todos os seus textos, que nos chegaram em parte apenas pelas refutações ou citações dos primeiros Padres da Igreja, ou então em obras dos maniqueus, os discípulos de Mani (216-276).
Ora desde a juventude (e para isso terá contribuído a leitura de textos de Clemente de Alexandria e de Fílon, bem como de autores já dos séculos XIX e XX Hargrave Jennings, J. M. Robertson, Ceasar Morgan, George Robert S. Mead e A. Siouville), encontramos em Fernando Pessoa uma preferência acentuada pela Gnose e, em vários fragmentos, escalona ascendentemente exotéricos, esotéricos e por fim os herméticos ou alquímicos ou gnósticos referindo ainda («os três modos de realização, mágico, místico e gnóstico», considerando estes últimos os verdadeiros detentores do Conhecimento. 
  Após os seus ensaios de desenvolvimento do Paganismo Transcendental, que culminou poeticamente em Alberto Caeiro e Ricardo Reis, Fernando Pessoa aprofundará a demanda iniciática e gnóstica e valorizará crescentemente a transmissão oculta no Cristianismo, concluindo, por exemplo, que «o Cristianismo, a exemplo da Grécia em que para além dos rituais visíveis e por assim dizer cívicos, havia o mundo subterrâneo dos Mistérios, formou-se com duas faces uma para a Luz, outra para a sombra, resultando da primeira as igrejas de Roma, Ortodoxa e Protestante. Da segunda face se formou uma única Igreja – a Igreja Gnóstica, possuidora dos íntimos mistérios; foi a ela a que mais tarde se haveria de chamar, na linguagem dos Rosicrucios, a Igreja Mística», dizendo dos Templários que «a esta Ordem Mística foram confiados os segredos e a tradição da Igreja Gnóstica», indicando assim que a antiga Gnose continuara entre nós como Igreja mística, com o Templários e, logo dada a sua extinção, com a Ordem de Cristo, fundada por bula papal em 1319 a pedido del-rei D. Diniz, e mais tarde ainda com o movimento da tradição Rosea Cruz.
 Fernando Pessoa estudou  então mais a Gnose dos (ou pelos) primeiros Padres da Igreja do que a dos Gnósticos principais, muitos deles de Alexandria, como Simão o Mago, Basilides, Valentino, Marcion (que afirma que «a Gnose é a redenção do homem interior e espiritual»), embora no bom livro Myth, Magic and Morals, a study of Christian origins, de Frederic Cornwallis Conybeare, que leu e anotou, haja um capítulo sobre Marcion, o primeiro a tentar preservar o ensinamento de Jesus fora dos quadros limitativos do Antigo Testamento e do Judaísmo.
Ora dentro das várias correntes que coexistiam na época áurea de Alexandria, de Antioquia e do Gnosticismo, Fernando    Pessoa desmarca-se de algumas delas e afirma as suas afinidades: «mais do que, propriamente, o dos neoplatónicos é meu o paganismo sincrético de Julião, o Apóstata».  
Todavia este imperador (361-62) romano Flávio Claudio Juliano (ou Julião), que abandonara o Cristianismo e estudara os ensinamentos Caldeus e de Máximo de Esmirna, era discípulo dos discípulos de Jâmblico (o iluminado sírio, autor de livros valiosos como os Mistérios do Egipto e a Vida de Pitágoras), o qual por sua vez era discípulo de Porfírio, autor do Tratado da Abstinência e secretário, biógrafo e editor (das Eneadas) de Plotino, o mais iluminado dos Neoplatónicos, por vezes crítico até dos Gnósticos. Ora o mestre de Plotino foi Amónio Saca, considerado por alguns como o primeiro Neoplatónico.
Esta seria a genealogia antiga iniciática da qual Fernando  Pessoa se reclamou, na sua fase neo-pagã, não se afirmando porém ainda cristão gnóstico. Aliás já noutro escrito dissera, «Juliano era, propriamente, um mitraísta, o que hoje se chamaria um teosofista ou um ocultista» (21-65), afirmação contextualizável  no sentido universal da palavra Teosofia, sabedoria divina, já que na época Fernando Pessoa  se distanciara (embora tivesse traduzido por encomenda de João Antunes seis obras) da Teosofia, enquanto Sociedade e movimento. Todavia ocultista  sempre foi Pessoa, enquanto estudioso das ditas ciências ocultas e das suas ordens e ensinamentos esotéricos, numa busca aturada de gnose ou conhecimento, seja espírita, astrológico, ocultista, kabala, tarot, alquimia, profecia, ordens mágicas, cosmogénese e antropogénese, teologia e o caminho de retorno e realização espiritual.
Na sua biblioteca, ainda hoje  mal catalogada na casa museu Fernando Pessoa, entre os cerca de oitenta livros sobre as origens do Cristianismo, encontramos as obras de Juliano (a quem consagrou aliás várias poesias e textos, uns dentro do seu projecto das Legendas, chegando a admitir que algo dele estivesse em si, o que cálculos ou adições numerológicas indiciariam), bem como livros contendo extractos dos textos dos primeiros Padres da Igreja, que durante muito tempo foram a fonte principal sobre a Gnose e os Gnósticos, tais como os livros de Edward Burton, John Kaye, Alfred Loisy e C. Morgan, lidos por Fernando Pessoa.
Historicamente a adopção de um conceito simples de fé (pisthis) mais do que de conhecimento (gnosis) que caracterizou o cristão da Igreja Católica nascente, que contudo tivera  a sua gnose profunda, bem expressa em Jesus (sobretudo mais patente no Evangelho de S. Tomé), em Orígenes e Clemente de Alexandria,  este tendo escrito mesmo: «a imagem de Deus é o seu Logos (e este divino Logos é o filho autêntico de Nous, luz arquétipa da luz) e imagem do Logos é o verdadeiro homem, o espírito que é no homem, e do qual se diz, por causa disso, de ter sido feito à imagem de Deus e à sua semelhança, assimilado ao Logos divino pela inteligência do seu coração e, por isso, razoável», Protreptico, X-98), suscitou a oposição do mais exigente e elevado (mas também muitas vezes complicado ou rebuscado) posicionamento dos Gnósticos, que começaram a dar origem a igrejas (sobretudo com Marcion e Valentino) ou a escolas e grupos, alguns com doutrinas ou aspectos considerados já heréticos (tal a negação da incarnação de Jesus ou da sua morte, e dos quais Fernando Pessoa fala), o que acabou por levar à destruição desses grupos gnósticos, tal como Fernando Pessoa descreve: «No conflito entre a Gnose e o Cristismo paganizado a Gnose foi vencida. Os gnósticos eram os  depositários da autêntica tradição cristista. ... O catolicismo destruiu a verdadeiro Cristismo.    Este porém, não morreu, porque a Gnose não se extinguiu».
Anote-se que a expressão "Cristismo paganizado", muito usado o 1º vocábulo por Pessoa mais jovem, corresponde à ideia que muitos dos ritos e costumes religiosos cristãos foram adaptações do que proveio do paganismo...
Ora se muitos dos textos gnósticos só nos chegaram, e apenas em parte, nas refutações dos primeiros Padres da Igreja (Justino, Ireneu, Hipólito, Epifânio), em certos textos Apócrifos não recolhidos no Novo Testamento”escolhido por S. Jerónimo, ou então nas obras do iraniano Mani (séc. III), o fundador de uma religião gnóstica que chegou até China e se perpetuou até ao Catarismo medieval, sendo de notar um ou outro poema de Fernando Pessoa dedicados à Mani ou ao Maniqueísmo, será só já nos meados do séc. XX que se descobrem finalmente cinquenta e nove textos gnósticos completos, de várias tendências ou magistérios cristãos coptas, em Nag Hammadi, no Alto Egipto, mas que Fernando Pessoa já não conheceu, dos quais se destaca o importante Evangelho de Tomé, um belo exemplar da Gnose, na tradição iniciática de Jesus, com enfâse no auto-conhecimento espiritual e na libertação em relação ao ego e às ilusões deste mundo…
 Ora a leitura das obras dos primeiros Padres cristãos, de Fílon e dos herméticos egípcios, de Alexandria, como sobretudo, já do séc. XIX, o livro The rosicrucian, their rites and mysteries, de Hargrave Jennings (1817-1890), onde o capítulo V se intitula Hermetic Philosophers, e talvez as obras do erudito teósofo  George R. S. Mead (1863-1933, na fotografia em cima), nomeadamente o Quests old and new (no qual leu a definição de Gnose, por Reitzenstein: «conhecimento imediato dos mistérios de Deus recebidos por contacto directo com a divindade – mistérios que devem permanecer ocultos ao homem natural»), terão contribuído para escrever os textos adolescentes, intitulados o Filósofo Hermético, ou o Desconhecido,  nos quais encontramos já uma valorização do Hermetismo (movimento gnóstico inicialmente não cristão e mais ligado à tradição egípcia) e da Gnose e onde escalona ascendentemente exotéricos, esotéricos (por vezes identificados aos gnósticos) e, por fim, os herméticos, alquímicos (ou também gnósticos), os verdadeiros detentores do conhecimento.  
 É em verdade aos meios gnósticos de Alexandria que se deve atribuir, nos séc. II, III e IV, a criação do Hermetismo (donde a equiparação frequente de herméticos, gnósticos e alquímicos realizada por Fernando Pessoa), com a redacção do Corpo Hermético, no qual a cosmogonia dos antigos Egípcios (sobretudo visível no tratado do Poimandros), e as influências e práticas de astrologia, magia, soteorologia e alquimia se fundiram com  o neo-platonismo e tiveram uma fortuna longa, quer pela sua divulgação no Renascimento pela tradução de Marsílio Ficino do grego para latim (1ª edição, em 1497, por Aldo Manuzio, e depois muito lida e traduzida nas línguas vulgares), quer através das  especulações acerca da Philosophia perennis, quer das práticas alquímicas, algo que Fernando  Pessoa acolherá utilizando ou estudando em alguns fragmentos a linguagem processual da alquimia como simbólica da purificação e transmutação anímica, ou mesmo como símbolos da concentração e revelação espiritual e da libertação universal.
Na sua fase mais forte de anti-cristianismo (ou anti-cristismo romano), tão influenciada por livres-pensadores e descrentes como Binet-Sanglé e J. M. Robertson, ou mesmo de filósofos como Nieztche e Tolstoi (fotografia em baixo), e com o desenvolvimento do Paganismo Transcendental, que desabrocha poeticamente em Alberto Caeiro e Ricardo Reis, surgem na prosa deste último até críticas ao misticismo e à espiritualidade seja neoplatónica seja gnóstica, afirmando em certo momento, por exemplo, «a decadência do helenismo representada pelo neoplatonismo alexandrino». 
 Contudo, reconhece Ricardo Reis, em 1917, num dos prefácios à obra de Alberto Caeiro, que o cristianismo ou cristismo inicial «no conflito com o misticismo neoplatónico, outra coisa, porém, aconteceu. Esse misticismo produziu, entrando em conflito ante-sincrético com o cristismo, a heresia célebre da Gnose. Esta heresia não desapareceu nunca. Opressa, esmagada exteriormente, essa seita ocultista tornou-se secreta, desapareceu da evidência histórica, mas não da vida. Não é impossível encontrar, aqui e ali, evidências da sua permanência secreta. E essa permanência oferece aspectos de conflito com o cristismo oficial e sobretudo com o católico. A par do cristismo oficial, com os seus vários misticismos e ascetismos e as suas magias várias, nós notamos, episodicamente vindo à superfície, uma corrente que data sem dúvida da Gnose (isto é da junção da cabala judaica com o neoplatonismo) e que ora nos aparece com o aspecto dos cavaleiros de Malta, ou dos Templários, ora, desaparecendo, nos torna a surgir nos Rosa-Cruz para, finalmente, surgir à plena superfície na Maçonaria. Os maçons são os descendentes remotos, mas segundo uma tradição nunca quebrada, dos esotéricos espíritos que compunham a Gnose...».
 De realçar as ideias ou entendimentos de Fernando Pessoa de que a Gnose resulta do sincretismo do Neoplatonismo com o Misticismo cristão e também com a Cabala (que na altura ainda não surgira…), e que no final do séc. XIX veio ao de cima «na moderna revivescência dos sistemas ocultistas, notável sobretudo pela importação, nos países de língua inglesa, do chamado Budismo esotérico, atroz amálgama de superstições de selvagens, de humanitarismo decadente e de gnosticismo atrapalhado, trouxe outra vez superfície o que pela Europa havia de restos da tradição oculta da Gnose».
Entenda-se que o “Budismo esotérico” designado e criticado é a Teosofia, ou a visão de parte da gnose oriental apresentada por ela sob tal designação e que fora mesmo o título de uma obra de um dos teósofos principais de então, A. P. Sinnet e que viria a ser traduzida também na mesma colecção da editora A. M. Teixeira em que Fernando Pessoa colaborara, Teosofia que criticou, como se sabe e acabámos de ler.
Fernando Pessoa no aprofundamento da demanda iniciática, valorizará constantemente a transmissão oculta no Cristianismo, concluindo, por exemplo, que «o Cristianismo, a exemplo da Grécia em que para além dos rituais visíveis e por assim dizer cívicos, havia o mundo subterrâneo dos Mistérios, formou-se com duas faces, uma para a Luz, outra para a sombra, resultando da primeira as igrejas de Roma, Ortodoxa e Protestante. Da segunda face se formou uma única Igreja – a Igreja gnóstica, possuidora dos íntimos mistérios; foi a ela a que mais tarde se haveria de chamar, na linguagem dos Rosicrucios, a Igreja Mística», dizendo dos Templários que «a esta Ordem Mística foram confiados os segredos e a tradição da Igreja Gnóstica».
À passagem, algo obscurecida nos séculos XVIII e XIX, da Gnose dos antigos e míticos rosacruzes para os maçónicos teceu Fernando Pessoa críticas, tal como em França fizera o mistagogo ocultista Eliphas Lévi,  devido à falta de conhecimento dos maçónicos em relação aos sentidos profundos e transformadores que os símbolos e rituais contêm potencialmente, afirmando mesmo a sua desilusão da Maçonaria da época: «fomos esmagados por liberais para quem a liberdade era a simples palavra de passe de uma seita reaccionária, por livres-pensadores para quem o cúmulo do livre pensamento era impedir uma procissão de sair, de Maçons para quem a Maçonaria (longe de reconhecerem nela a depositária da herança sagrada da Gnose) nunca foi mais do que uma carbonária ritual», ou ainda «a Ordem, em vez de ser, como supremamente lhe competia a depositária consciente das doutrinas sagradas da Gnose e da Kabbalah nas suas transmissões templária e rosicruciana, ficou uma simples Carbonária ritual, um anticlericalismo secreto, católico-romano em espírito até à medula, na sua chateza, na sua intolerância, na sua ignorância das mesmas consequências superiores da sua própria constituição e dos seus próprios Mistérios», algo que se conservou em parte até aos nossos dias pois sabemos bem como as egrégoras ou formas de pensamento colectivo não mudam tão fácil nem rapidamente…
Esta crítica forte mas construtiva à Maçonaria não o impedirá porém em 1935 de sair em defesa dela, escrevendo um longo artigo no Diário de Notícias, aquando da perseguição às Associações Secretas pelo  Estado Novo de Salazar, através da proposta de lei do deputado José Cabral de 19 de Janeiro, ora porque sabia do valor ocultista e gnóstico dela ora porque tal perseguição fora também aplaudida por católicos reaccionários, segundo Fernando Pessoa escreve em textos em resposta a artigos de jornais publicados pelo jornal católico A Voz, nomeadamente, referindo os «encómios com que o projecto foi afagado pela imprensa pseudo-cristã, que as "associações secretas", que ele verdadeiramente visa, são aquelas que envolvem o que se chama "iniciação"».
 No fim da sua vida, na nota autobiográfica de Janeiro de 1935, afirma-se Cristão gnóstico e iniciado na Ordem Templária de Portugal, esclarecendo deste modo definitivamente a sua religiosidade e o seu laço de amor iniciático. Isto já fora antes frequentemente enunciado, como, por exemplo, na 3ª das condições para a iniciação na Ordem Templária de Portugal: «crença (indefinida) na divindade de Cristo e da Trindade Santa», ou por exemplo num texto em que conclui «só podemos ser um com Deus, em e através de Cristo».
Mas Cristão Gnóstico em que sentidos?
Seria pela sua ampla liberdade gnósica e hermenêutica dos textos tradicionais, sem se coagir por cânones e dogmas externos?
Seria pelos seus estudos e realizações da Tradição secreta do Cristianismo, da Gnose cristã, presente em Jesus, e em seguida na tradição Templária, Rosicruciana e ocultista em que se iniciara e avançara, ou ainda da gnose Cabalística e Maçónica, que também conhecia e aprofundara, e que afirma expressamente serem veios dessa tradição secreta?
Seria pelo seu reconhecimento não só do Cristo (em um ou outro texto identificando-o mesmo com Sophia, a Sabedoria feminina, a papisa do Tarot), o Logos, intermediário entre Deus e os homens, como cada vez mais até de Jesus, como o Mestre, o Salvador, o pináculo da hierarquia dos mestres?
Certamente por algumas destas razões e mais algumas…
Além das afinidades íntimas que desde o início da sua demanda tinha com os Gnósticos, nomeadamente a desvalorização deste mundo, do mal e das limitações que ele nos impõe, e do seu Demiurgo criador, em verdade, Fernando    Pessoa ao investigar fortemente a natureza de Jesus e do Cristo (bem como dos seus ensinamentos, tal como já vimos antes, referidos nas transmissões gnósticas, templárias e rosicrucianas), em muitas, por vezes desassosegadas, horas e páginas, conseguirá que a fase frequentemente virulenta de anti-cristismo de 1907 a 1915 se vá transformando numa percepção cada vez mais profunda e conhecedora, gnóstica, fazendo-o afirmar: «A natureza de Jesus Cristo é dupla – para os ocultistas como para os teológos cristãos... Os Gnósticos, que eram ocultistas, ou pelo menos místicos superiores, assim viram, mas separaram as duas naturezas, adorando só a divina, que lhe será necessariamente superior, e não a humana, que, quanto muito, só em grau, que não em género, o poderia ser».
Mas talvez tenhamos que reconhecer que no fim do seu percurso precocemente terminado ao morrer com 47 anos, Jesus, o Cristos, o ungido, «em quem a dupla natureza de Homem e de Deus incarna numa pessoa só» já não é apenas um grau, o mais elevado, da escala iniciática, sobre a qual Fernando Pessoa tantas vezes laborou, admitido também noutro texto e escala no qual o grau ou nível supremo é ocupado pelo Senhor (Jesus), mestre do Templo,  (e em que no 1º nível, designado como o dos construtores "makers and builders", curiosamente nos dá os exemplos do rei D. Dinis e de Bandarra, consagrando assim a poesia e a profecia, a que ele tanto se dedicou também), mas sim «o laço entre o Mundo e Deus».
Quanto à questão da Divindade, sempre essencial na Gnose, sabemos quão crítico foi Fernando Pessoa do Jeová bíblico, ou seja da concepção de Deus judaico-cristã, tribal, violenta e possessiva, estando antes em linhas próximas do Gnosticismo, nomeadamente de Marcion, e mesmo no fim da vida, ao contrário da sua relação com Jesus e Maria,  na qual se dera uma aproximação grande ao aceitá-los como grandes seres intermediários (algo que ainda não foi compreendido pela generalidade dos pessoanos), Fernando Pessoa continuará a desvalorizar o Demiurgo ou criador deste mundo, provavelmente apontando para uma visão ou um entendimento emanacionista cíclico e não criacionista: «E isto tudo durará o tempo que tiver que durar, porque nada há perene ou eterno, e o mesmo Deus que criou este mundo não é porventura mais que um de muitos «deuses», criador de um de muitos «universos», misteriosamente coexistentes, todos eles porventura descritíveis como infinitos e eternos. O mistério – di-lo o mais alto ocultismo – é maior não só que o Universo, mas que o mesmo Deus».
De realçar aqui as expressões “alto ocultismo”, referida em parte às Ordens Secretas e seus ensinamentos a que teve acesso (nomeadamente a Golden Dawn e a Astra Astrarium), e o “mistério”, que na Gnose mais tradicional é designado pelo Um, o Espírito perene e absoluto, o Princípio de Tudo, o Absoluto, donde emanam ciclicamente as manifestações cósmicas, onde se erguerão os deuses e as individualidade…
 Fernando   Pessoa contudo talvez se tenha autolimitado nesta captação do Absoluto, o que está também patente na sua tragédia subjectiva Fausto (mito arquétipo até com raízes na vida do gnóstico Simão, o Mago), pois vê ou visualiza acima de Deus, o Destino, a Inteligência: «acima da ânsia de fusão com os produtos de Deus, está, com efeito, a ânsia mística de fusão com Deus, que é a base do ocultismo (quase) todo. Mas acima desta mesma ânsia está a ânsia de fugir a Deus e ao mundo – a ânsia de fusão com o Destino. (...) A Inteligência não é deste mundo, é estranha à substância do mundo: deriva do Destino, superior aos Homens e a Deus», concepção esta que desenvolverá nos textos intitulados Caminho da Serpente, nos quais diminuía a sua relação viva com a Divindade, ou com o seu Logos salvador, mas que acabará por repudiar, tal como abdicadas foram a via da magia e da alquimia, conforme ele próprio confessa no fim da sua vida: «pensar o que fazer do caminho da serpente agora repudiado», fragmento este que não tem sido tomado em conta pelos poucos que se debruçaram, e em geral insuficientemente, sobre este caminho da Serpente, ascensional mas que se pode tornar demasiado luciferino, isto é, intelectual e sem a devoção e amor às manifestações libertadora possíveis da Divindade…
 
Certamente que os Gnósticos, também conhecidos, na divisão valentiniana (do gnóstico Valentino), por pneumáticos (de pneuma, espírito e sopro, em grego, com o qual se identificavam e a partir do qual se libertavam das prisões terrenas) serão uns poucos e isolados, em comparação com os hílicos, ou terrenos, e os psíquicos ou mentais (os envoltos na dualidade, no ego, no pensamento discursivo ou na vaidade do ensinar), isolamento este que estava bem para a aristocracia de espírito ainda que vagabunda, pobre e desassossegada do individualista e modernista Fernando    Pessoa.
Ele lembra-nos, porém, que a Gnose, a Iniciação, não é meramente uma torre de marfim intelectual mas um estado intensificado de vida e de intuição, em que «os graus de iniciação representam estados de conhecimento que são simultaneamente estados de vida», afirmação esta numa analogia de grau superior ou complementar à frase “o que em mim está pensando está sentindo”.
A vertente ou eixo mais directo ou essencial da desvendação e auto-conhecimento salvífico ou libertador, característico da Gnose universal, será também transmitido por Fernando Pessoa quer em poemas, como os do ciclo de Isaac Luria e de Jesus, quer em fragmentos, nomeadamente o importantíssimo dos últimos meses da sua caminhada na Terra: «o conhecimento de Deus não depende do hebreu, nem de anagramas, nem de símbolos. Nem de língua alguma, falada ou pensada (variante: figurada); faz-se pela ascensão univocal da alma, pelo encontro final da alma consigo mesmo, do Deus em nós consigo mesmo».
Certamente que estas palavras finais apelam a uma Gnose exigente nossa, iniciática, auto-consciente e profunda e perseverante para alcançar a dimensão espiritual a a ligação unitiva e divina. E, para nos lembrar e estimular a tal, serve a tradição Gnóstica, na qual Fernando Pessoa se inseriu e nós também...
Vale!
Alguma bibliografia sobre a Gnose:
Gasparo, Giulia Sfameni. Gnostica et hermetica. Saggi sullo Gnosticismo e sull’ Ermetismo. Roma, ed. dell’Ateneo, 1982.   Puech, Henri-Charles. En quête de la Gnose. I, II. Paris, Gallimard, 1978.  Grant, Robert M. La Gnose et les origines chrétiennes. Trad. Paris, Seuil, 1964.   E os textos que editei em Fernando Pessoa, Rosea Cruz. Lisboa, 1989. E a Poesia Profética, Mágica e espiritual. 1989.
Bibliografia, apenas com os nomes de autores:
Obras de Louis Ménard, G. R. S. Mead, Hans Leisegang, A. Siouville, Bô Yin Râ, A. J. Festugière, E. Bonaiuti, Hans Jonas, Mircea Eliade, I. Couliano, Valentin Tomberg, Duncan Greenlees, A.-J. Festugière, Simone Pétrement, Henri-Charles Puech, Jean Doresse, Yuri Stoyanov, Bedde Griffiths, Karlfried Graf Dürckeim, Henry Corbin, Giulia Sfameni Gasparo, Serge Hutin, Robert Ambelain, Émile Gillabert, Jacques Ménard, Robert M. Grant, Raimon Panikkar, André Wautier, Elaine Pagels, Benjamin Walker, Antonio Piñero, Pedro Teixeira da Mota..., etc.

2 comentários:

Unknown disse...

Hi Dear Pedro,
I liked to read your weblog; so I took a general look at your last post using translation ability of my browser. As I expected, you have written about soul and divine... I saw the name of my country Iran and I got curious about it.
It doesn't need to publish English post, for I can read your words by web translation. Although it doesn't say what you write exactly, but I can get the main idea...
Thanks...
Sepideh

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Hi dear Sepideh
I have given already answer to you by mail. But I will try to translate the parts that interest you more, as we know how weak are so many automatic translations automatic, as Bing...
We will keep in contact in the Irfan or Gnosis of the human being, of Persia, of Fernando Pessoa...