GNOSE em FERNANDO PESSOA...
Uma tradição imemorial, por clarividência
ou revelação do Alto, se não mesmo primordial por reminiscência, ensina que o ser humano essencialmente é um espírito, uma
centelha de origem divina emanada do Ser e mundo Divino e tombada ou aprisionada num corpo animal, no mundo terreno,
e que a sua missão principal é recuperar ou redimir, desse estado de
amnésia e ignorância, a identificação espiritual e a ligação divina (ou mesmo o
retorno, no corpo glorioso ou transfigurado, à plenitude, ao pleroma), o
que se consegue, desabrocha ou se desvenda pelo auto-conhecimento interno ou, se quisermos,
pelo reconhecimento e vivência do Ser real e espiritual…
Ora desta descida ou queda do
mundo espiritual para o material e terreno Fernando Pessoa
tinha consciência e aludiu a ela frequentemente: («Aconteceu-me do alto do
infinito// esta vida (...) in Centauro, 1916, ou «Quando despertos deste
sono, a vida/ Soubermos o que somos, e o que foi/ Essa queda até ao Corpo, esta
descida/ Até à Noite que nos a alma obstrui», ou ainda, num belo texto de
reminiscência espiritual, «súbitas confissões de outro que eu fui outrora/
Antes da vida, e viu Deus, e eu não o sou agora»,afirmação que contudo poderemos
questionar se foi mesmo experiência ou mais imaginação poética...
A palavra grega gnosis –
conhecimento, assinala tanto o meio ou caminho como o objectivo ou estado auto-consciencial
espiritual, e ao longo dos séculos sempre houve a Gnose, assumida ora como o
conhecimento iluminado da Verdade e da Unidade Divina e Espiritual, ora como
uma via ou ciência iniciática, inspirada, libertadora, salvífica, capaz de despertar e
iluminar, através da preparação e purificação gradual ou, em certos casos, da
revelação súbita.
Os Mistérios da Antiguidade, o discipulado de
mestre a discípulo, as práticas ascéticas, devocionais, meditativas e
contemplativas, e a auto-consciencialização perseverante serão os meios
principais para este reconhecimento ígneo e etéreo acontecer em nós ou conservar-se e o
Gnóstico é quem trabalha e mantém a tomada de conhecimento de si mesmo unido
Áquele que estava oculto, o Pai, o Um, a Unidade, o Espírito, o Princípio donde
emanou….
Por
Gnosticismo entendem-se em especial os movimentos religiosos e salvíficos que,
do I. séc. d. C. em diante, e mais especificamente no Médio Oriente e na Ásia Menor,
se desenvolveram por vivência interior e ensinamentos, apoiados na sabedoria devedora do Helenismo e do Neoplatonismo, bem como nas influências de ambientes, cultos e
mistérios Orientais, a que se acrescenta por fim os ensinamentos directo ou indirectos de Jesus.
Com efeito, se
muitos destes movimentos
se desenvolveram a partir da Gnose mais pura,
a do conhecimento directo espiritual, inefável, não mental ou discursivo, não
já de crença mas de visão e realização interior, também em muitos casos filiavam-se ou apoiavam-se mais no ensinamento
directo de Jesus ou no de mestres e seitas sírias e judaicas, enquanto noutros
ligavam-se mais à mística grega (com origens órficas e pitagóricas), ao
Neoplatonismo bem como ainda às influências dos ambientes ecuménicos dos
cultos, mistérios e iniciações do Egipto (nomeadamente em Alexandria), da Índia
(de onde se conheciam então os gimnosofistas, desde Alexandre Magno, e da qual o milenar Jnana Yoga, do Vedanta,
é vivido, por exemplo, no séc. XX, por Ramana Maharishi, é um bom exemplo da
mais pura gnose), e do Irão (tão estudado por Henry Corbin, sobretudo no
zoroastrismo e no Islão Shiita). Há portanto uma Gnose na tradição Indo-europeia forte e certamente que nos outros continentes ou povos nas suas espiritualidadesnão será difícil encontrar muitas das suas características.
Sem doutrinas
muito fixas ou rígidas, certos traços são contudo em geral característicos do
Gnosticismo, tal como os dualismos: o Deus mau do "Antigo Testamento" e o Bom de
Jesus (ou o Deus Desconhecido), o espírito e o corpo, o mundo espiritual e o
material (repudiado ou contestado em geral), os filhos da luz e os das trevas,
o redentor-salvador e o mundo ou a humanidade em perdição.
Complexos (ou
imaginalmente criativos) mitos ou cosmogéneses de emanações sucessivas dos
Éons, Espíritos, Deuses ou Anjos abundam também. A desvalorização das
hierarquias externas, dos rituais e sacramentos (ainda que os houvesse, por
exemplo, nos Cristãos Gnósticos denominados valentinianos), da moralidade
externa (donde haver tanto a sublimação sexual como a licenciosidade) e das
noções de bem e de mal (tão questionadas por Fernando Pessoa, com a tão reiterada regra, de S. Paulo e Rabelais a A. Crowley, faz o
que queres é a lei,) para além da ampla liberdade criativa e interpretativa
das doutrinas, textos e experiências são também características dos Gnósticos, tudo assentando no
autoconhecimento espiritual, na revelação do Salvador ou Mestre, num desprendimento do
mundo e da ilusão egóica, tudo desaguando na realização libertadora, beatífica, frequentemente designada como o Repouso. "Um
entre mil", dizia-se, do conhecedor do espírito luminoso, do Gnóstico unido ou mesmo identificado
ao Espírito suprapessoal, Um...
Embora houvesse pois muitas tendências
e características diferentes nos Gnósticos, veremos que Fernando Pessoa coincide com eles em muitos pontos, nomeadamente
no dualismo do espírito e matéria, na desvalorização deste mundo, onde o
mal está tão presente («o Príncipe deste
mundo, como todos sabemos, é Satan, porque este mundo é o inferno de que
falam», escreve-nos), e no menosprezo do seu Demiurgo ou Criador, identificado constantemente
com o Deus inferior do Antigo Testamento, ignorante e limitado.
Também a distinção entre o mestre
Jesus e o Logos ou Cristo Cósmico, que
nele se manifestara mais plenamente, é comum a Fernando Pessoa e aos Gnósticos, tal como a da realização iluminativa no
autoconhecimento da centelha ou pérola perdida (referida por exemplo, como o encontro da alma consigo mesmo) que a desprende ou liberta das ilusões e sonhos
do oceano da existência terrena, após a sua queda através dos vários planos ou
mundos subtis. e peregrinação.
Em Fernando Pessoa vamos encontrar ao longo dos anos
dezenas de textos nestes sentidos (por exemplo:«O Criador do Mundo não é o
Criador da Realidade: em outras palavras, não é o Deus inefável, mas um
Deus-homem ou Homem-Deus, análogo a nós mesmo mas a nós superior», que
justificam plenamente a sua tentativa de união complementarizadora do paganismo
e do cristianismo e por fim a sua afirmação de cristão gnóstico.
A
Igreja Cristã nascente e que colava a Lei e o Jeová do “Antigo Testamento”
(concepção esta de Deus frequentemente criticada ou ridicularizada por F. Pessoa..) à graça do Amor e Conhecimento
libertadores da Boa Nova de Jesus, ainda que tendo a sua Gnose, bem patente em
Orígenes e Clemente de Alexandria, acabou por opor-se forte e dogmáticamente às
pequenas igrejas ou grupos gnósticos, acabando por levar à destruição de quase
todos os seus textos, que nos chegaram em parte apenas pelas refutações ou
citações dos primeiros Padres da Igreja, ou então em obras dos maniqueus, os
discípulos de Mani (216-276), até que finalmente em 1945 apareceu um biblioteca
de cristãos coptas do Egipto com vários códices preciosos, tal como o mais iniciático Evangelho
de S. Tomé…
Ora desde a
juventude (e para isso terá contribuído a leitura de textos de Clemente de
Alexandria e de Philon, bem como os dos autores já dos séculos XIX-XX Hargrave
Jennings, J. M. Robertson, Ceasar Morgan, G. R. S. Mead e A. Siouville), encontramos
em Fernando Pessoa uma
preferência acentuada pela Gnose e, em vários fragmentos, escalona ascendentemente
exotéricos, esotéricos e por fim os herméticos ou alquímicos ou gnósticos referindo
ainda («os três modos de realização, mágico, místico e gnóstico», considerando
estes últimos os verdadeiros detentores do Conhecimento.
Após os seus
ensaios de desenvolvimento do Paganismo Transcendental, que culminou
poeticamente em Alberto Caeiro e Ricardo Reis, Fernando Pessoa aprofundará a demanda iniciática e
gnóstica e valorizará crescentemente a transmissão oculta no Cristianismo,
concluindo, por exemplo, que «o Cristianismo, a exemplo da Grécia em que para
além dos rituais visíveis e por assim dizer cívicos, havia o mundo subterrâneo
dos Mistérios, formou-se com duas faces uma para a Luz, outra para a sombra,
resultando da primeira as igrejas de Roma, Ortodoxa e Protestante. Da segunda
face se formou uma única Igreja – a Igreja Gnóstica, possuidora dos íntimos
mistérios; foi a ela a que mais tarde se haveria de chamar, na linguagem dos
Rosicrucios, a Igreja Mística», dizendo dos Templários que «a esta Ordem Mística
foram confiados os segredos e a tradição da Igreja Gnóstica», indicando assim
que a antiga Gnose continuara entre nós como Igreja mística, como o Templarismo
e logo a Ordem de Cristo, e ainda como tradição Rosea Cruz.
Fernando Pessoa estudou estudou então mais a Gnose dos (ou
pelos) primeiros Padres da Igreja do que a dos Gnósticos principais, muitos deles
de Alexandria, como Simão o Mago, Basilides, Valentino, Marcion (que afirma que
«a Gnose é a redenção do homem interior e espiritual»), embora no livro Myth,
Magic and Morals, a study of Christian origins, de Frederic Cornwallis
Conybeare, que leu e anotou, haja um capítulo sobre Marcion, o primeiro a tentar
libertar o ensinamento de Jesus dos quadros limitativos do Antigo Testamento e
do Judaísmo.
Ora dentro das várias correntes que coexistiam na época áurea de
Alexandria, de Antioquia e do Gnosticismo, Fernando Pessoa desmarca-se de algumas delas e afirma as suas afinidades: «mais do que,
propriamente, o dos neoplatónicos é meu o paganismo sincrético de Julião, o
Apóstata». Mas este imperador (361-62) romano Flávio Claudio Juliano (ou Julião), que
abandonara o Cristianismo e estudara os ensinamentos Caldeus e de Máximo de
Esmirna, era discípulo dos discípulos de Jâmblico (o iluminado sírio, autor de
livros tão importantes como os Mistérios do Egipto e a Vida de
Pitágoras), o qual por sua vez era discípulo de Porfírio, autor do Tratado
da Abstinência e secretário, biógrafo e editor (das Eneadas) de
Plotino, o mais iluminado dos Neoplatónicos, por vezes crítico até dos Gnósticos. Ora o
mestre de Plotino foi Amónio Saca, considerado por alguns como o primeiro
Neoplatónico.
Esta seria a genealogia antiga
iniciática da qual Fernando Pessoa se reclamou, na sua fase
neo-pagã, não se afirmando porém ainda cristão gnóstico. Aliás já noutro
escrito dissera, «Juliano era, propriamente, um mitraísta, o que hoje se
chamaria um teosofista ou um ocultista» (21-65), afirmação
contextualizável numa época em que não se teria
ainda distanciado da Teosofia, como a certa altura fez com mais força,
amenizando-se mais tarde…
Na sua biblioteca, com cerca de
oitenta livros sobre as origens do Cristianismo, encontramos as obras de
Juliano (a quem consagrou aliás várias poesias e textos, uns dentro do seu
projecto das Legendas, chegando a admitir que algo dele estivesse em si,
o que cálculos ou adições numerológicas indiciariam), bem como livros contendo
extractos dos textos dos primeiros Padres da Igreja, que durante muito tempo
foram a fonte principal sobre a Gnose e os Gnósticos, tais como os de Edward
Burton, John Kaye, Alfred Loisy e C. Morgan e que Fernando Pessoa leu.
Ao conceito simples do conhecimento que devia caracterizar o
cristão da Igreja Católica nascente, que mesmo assim tivera a sua gnose profunda, bem expressa em Jesus (sobretudo
mais patente no Evangelho de S. Tomé), em Orígenes e Clemente de Alexandria, o qual escrevera mesmo: «a imagem de Deus é o
seu Logos (e este divino Logos é o filho autêntico de Nous, luz arquétipa da
luz) e imagem do Logos é o verdadeiro homem, o espírito que é no homem, e do
qual se diz, por causa disso, de ter sido feito à imagem de Deus e à sua
semelhança, assimilado ao Logos divino pela inteligência do seu coração e, por
isso, razoável», Protreptico, X-98), opôs-se o mais exigente e elevado (mas
também muitas vezes complicado ou rebuscado) posionamento dos Gnósticos, que começaram a dar
origem a igrejas (sobretudo com Marcion e Valentino) ou a escolas e grupos,
alguns com doutrinas ou aspectos considerados já heréticos (tal a negação da
incarnação de Jesus ou da sua morte, e dos quais Fernando Pessoa fala), o que acabou
por levar à destruição não só deles gnósticos, como F. Pessoa descreve: «No
conflito entre a Gnose e o Cristismo paganizado a Gnose foi vencida. Os
gnósticos eram os depositários da
autêntica tradição cristista. ... O catolicismo destruiu a verdadeiro
Cristismo. Este porém, não morreu,
porque a Gnose não se extingiu».
Ora se muitos dos seus textos, só nos chegaram, e apenas em parte,
nas refutações dos primeiros Padres da Igreja (Justino, Ireneu, Hipólito, Epifânio),
em certos textos Apócrifos não recolhidos no “Novo Testamento” escolhido por S.
Jerónimo, ou então nas obras de Mani (séc. III), o fundador de uma religião
gnóstica que chegou até China e se perpetuou até ao Catarismo medieval, sendo de notar um ou outro poema de Fernando Pessoa
dedicados à Mani ou ao Maniqueísmo.
É só já nos meados do séc. XX que se descobrem
finalmente cinquenta e nove textos gnósticos completos,
de várias tendências ou magistérios, em Nag Hammadi, no Alto Egipto, mas que Fernando
Pessoa já não conheceu, dos quais se destaca o famoso Evangelho de Tomé,
um belo exemplar da Gnose, na tradição iniciática de Jesus, com enfâse no
auto-conhecimento espiritual e na libertação das ilusões deste mundo…
Ora a leitura das obras dos primeiros Padres cristãos, de Fílon
e dos herméticos egípcios, de Alexandria, como sobretudo, já do séc. XIX, o
livro The rosicrucian, their rites and mysteries, de Hargrave Jennings (
onde o capítulo V se intitula Hermetic Philosophers ) e talvez as obras do
erudito teósofo G. R. S. Mead, nomeadamente o Quests old and new (no
qual leu a definição de Gnose, por Reitzenstein: «conhecimento imediato
dos mistérios de Deus recebidos por contacto directo com a divindade –mistérios
que devem permanecer ocultos ao homem natural»), terão contribuído para
escrever os textos adolescentes, intitulados o Filósofo Hermético, ou o Desconhecido, onde encontramos já uma valorização do Hermetismo
(movimento gnóstico inicialmente não cristão e mais ligado à tradição egípcia)
e da Gnose e onde escalona ascendentemente
exotéricos, esotéricos (por vezes identificados aos gnósticos) e por fim
os herméticos, alquímicos (ou também gnósticos), os verdadeiros detentores do
conhecimento.
É aos meios gnósticos de
Alexandria que se deve atribuir, nos séc. II, III e IV, a criação do Hermetismo
(donde a equiparação frequente de herméticos, gnósticos e alquímicos realizada
por Fernando
Pessoa), com a redacção do Corpo
Hermético, no qual a cosmogonia dos antigos Egípcios (sobretudo visível no
tratado do “Poimandros”), e as influências e práticas de astrologia, magia,
soteorologia e alquimia se fundiram e tiveram uma fortuna longa, quer pela sua
divulgação no Renascimento pela tradução de Marsílio Ficino do grego para latim
(e que será muito lida e traduzida nas línguas vulgares), quer através dos
laboratórios, especulações e práticas alquímicas, que Fernando Pessoa acolherá utilizando ou estudando em alguns
fragmentos a linguagem processual da alquimia como simbólica da purificação e
transmutação anímica, ou mesmo como símbolos da concentração e revelação
espiritual e da libertação universal.
Na sua fase mais forte de
anti-cristianismo (ou anti-cristismo romano), tão influenciada por livres-pensadores
e descrentes como Binet-Sanglé e J. M. Robertson, ou mesmo de filósofos como Nieztche e Tolstoi, e com o
desenvolvimento do Paganismo Transcendental, que desabrocha poeticamente em Alberto
Caeiro e Ricard Reis, surgem na prosa deste último até críticas ao misticismo e
à espiritualidade seja neoplatónica seja gnóstica, afirmando em certo momento, por
exemplo, «a decadência do helenismo representada pelo neoplatonismo
alexandrino». Contudo, reconhece Ricardo Reis, em 1917, num dos prefácios à
obra de Alberto Caeiro, que o cristianismo ou cristismo inicial «no conflito
com o misticismo neoplatónico, outra coisa, porém, aconteceu. Esse misticismo
produziu, entrando em conflito ante-sincrético com o cristismo, a heresia
célebre da Gnose. Esta heresia não desapareceu nunca. Opressa, esmagada
exteriormente, essa seita ocultista tornou-se secreta, desapareceu da evidência
histórica, mas não da vida. Não é impossível encontrar, aqui e ali, evidências
da sua permanência secreta. E essa permanência oferece aspectos de conflito com
o cristismo oficial e sobretudo com o católico. A par do cristismo oficial, com
os seus vários misticismos e ascetismos e as suas magias várias, nós notamos,
episodicamente vindo à superfície, uma corrente que data sem dúvida da Gnose
(isto é da junção da cabala judaica com o neoplatonismo) e que ora nos aparece
com o aspecto dos cavaleiros de Malta, ou dos Templários, ora, desaparecendo,
nos torna a surgir nos Rosa-Cruz para, finalmente, surgir à plena superfície na
Maçonaria. Os maçons são os descendentes remotos, mas segundo uma tradição
nunca quebrada, dos esotéricos espíritos que compunham a Gnose...».
De realçar as ideias ou
entendimentos de Fernando Pessoa de que a Gnose resulta do sincretismo do
Neoplatonismo com o Misticismo cristão e também com a Cabala (qu na altura
ainda não surgira…), e que no final do séc. XIX veio ao de cima «na moderna
revivescência dos sistemas ocultistas, notável sobretudo pela importação, nos
países de língua inglesa, do chamado Budismo esotérico, atroz amálgama de
superstições de selvagens, de humanitarismo decadente e de gnosticismo
atrapalhado, trouxe outra vez superfície o que pela Europa havia de restos da tradição
oculta da Gnose».
Entenda-se que o “Budismo
esotérico” designado e criticado é a Teosofia ou melhor a visão de alguma gnose
oriental apresentada por ela sob tal designação e que fora mesmo o título de
uma obra de um dos teósofos principais de então, A. P. Sinnet e que viria a ser
traduzida também na mesma colecção da editora A. M. Teixeira em que Fernando Pessoa
colaborara e que mais tarde criticou forte ou “atrozmente”, como acabámos de
ler.
Fernando Pessoa no aprofundamento
da demanda iniciática, valorizará constantemente a transmissão
oculta no Cristianismo, concluindo, por exemplo, que «o Cristianismo, a exemplo
da Grécia em que para além dos rituais visíveis e por assim dizer cívicos,
havia o mundo subterrâneo dos Mistérios, formou-se com duas faces, uma para a
Luz, outra para a sombra, resultando da primeira as igrejas de Roma, Ortodoxa e
Protestante. Da segunda face se formou uma única Igreja – a Igreja gnóstica,
possuidora dos íntimos mistérios; foi a ela a que mais tarde se haveria de
chamar, na linguagem dos Rosicrucios, a Igreja Mística», dizendo dos Templários
que «a esta Ordem Mística foram confiados os segredos e a tradição da Igreja
Gnóstica».
À passagem, algo
obscurecida nos séculos XVIII e XIX, da Gnose dos antigos e míticos rosacruzes
para os maçónicos teceu Fernando Pessoa críticas, tal como em França fizera Eliphas
Lévi, devido à falta de conhecimento dos
maçónicos em relação aos sentidos profundos e transformadores que os símbolos e
rituais contêm potencialmente, afirmando mesmo a sua desilusão da Maçonaria
da época: «fomos esmagados por liberais para quem a liberdade era a simples palavra
de passe de uma seita reaccionária, por livres-pensadores para quem o cúmulo do
livre pensamento era impedir uma procissão de sair, de Maçons para quem a
Maçonaria (longe de reconhecerem nela a depositária da herança sagrada da
Gnose) nunca foi mais do que uma carbonária ritual», ou ainda «a Ordem, em vez
de ser, como supremamente lhe competia a depositária consciente das doutrinas
sagradas da Gnose e da Kabbalah nas suas transmissões templária e rosicruciana,
ficou uma simples Carbonária ritual, um anticlericalismo secreto,
católico-romano em espírito até à medula, na sua chateza, na sua intolerância,
na sua ignorância das mesmas consequências superiores da sua própria
constituição e dos seus próprios Mistérios», algo que se conservou
provavelmente até aos nossos dias pois sabemos bem como as egrégoras ou formas
de pensamento colectivo não mudam tão fácil nem rapidamente…
Esta crítica forte à Maçonaria não o impedirá porém em 1935
de sair em defesa dela, aquando da perseguição às Associações Secretas pelo
Estado Novo, tanto mais que tal perseguição surgira de certo modo instigada
também por católicos reaccionários, segundo Fernando Pessoa escreve em textos.
No fim da sua vida, na nota
autobiográfica de Janeiro de 1935, afirma-se Cristão gnóstico e iniciado na
Ordem Templária de Portugal, esclarecendo deste modo definitivamente a sua
religiosidade e o seu laço de amor iniciático. Isto já fora antes
frequentemente enunciado, como, por exemplo, na 3ª das condições para a iniciação
na Ordem Templária de Portugal: «crença (indefinida) na divindade de Cristo e
da Trindade Santa», ou por exemplo num texto em que conclui «só podemos ser um
com Deus, em e através de Cristo».
Mas Cristão gnóstico em que
sentidos?
Seria pela sua ampla liberdade
gnósica e hermenêutica dos textos tradicionais, sem se coagir por cânones e
dogmas externos?
Seria pelos seus estudos e
realizações da Tradição secreta do Cristianismo, da Gnose cristã, presente em
Jesus, e em seguida na tradição Templária, Rosicruciana e ocultista em que se
iniciara e avançara, ou ainda da gnose Cabalística e Maçónica, que também
conhecia e aprofundara, e que afirma expressamente serem veios dessa tradição
secreta?
Seria pelo seu reconhecimento
não só do Cristo (em um ou outro texto identificando-o mesmo com Sophia,
a Sabedoria feminina, a papisa do Tarot), o Logos, intermediário entre Deus e os homens, como cada vez mais até de Jesus, como o
Mestre, o Salvador, o pináculo da hierarquia dos mestres?
Certamente por todas estas
razões e mais algumas…
Além das afinidades íntimas que desde
o início da sua demanda tinha com os Gnósticos, nomeadamente a desvalorização
deste mundo, do mal e das limitações que ele nos impõe, e do Demiurgo creador
dele, em verdade, Fernando Pessoa ao investigar
fortemente a natureza de Jesus e do Cristo (bem como dos seus ensinamentos, tal
como já vimos antes, referidos nas transmissões gnósticas, templárias e
rosicrucianas), em muitas, por vezes desassosegadas, horas e páginas, conseguirá que a fase frequentemente
virulenta de 1907 a 1915 se vá transformando numa percepção cada vez mais profunda
e conhecedora, gnóstica, fazendo-o afirmar: «A natureza de Jesus Cristo é dupla
– para os ocultistas como para os teológos cristãos... Os Gnósticos, que eram
ocultistas, ou pelo menos místicos superiores, assim viram, mas separaram as
duas naturezas, adorando só a divina, que lhe será necessariamente superior, e
não a humana, que, quanto muito, só em grau, que não em género, o poderia ser».
Mas talvez tenhamos que
reconhecer que no fim do seu percurso precocemente terminado ao morrer com 47 anos, Jesus, o Cristos,
o ungido, «em quem a dupla natureza de Homem e de Deus incarna numa pessoa só» já não é apenas um grau, o mais
elevado, da escala iniciática, sobre a qual Fernando Pessoa tantas vezes laborou, admitido também noutro texto e escala no qual o grau ou nível supremo é ocupado
pelo Senhor (Jesus), mestre do Templo, (e em que no 1º nível, designado como o dos
construtores "makers and builders", curiosamente nos dá os exemplos do
rei D. Dinis e de Bandarra, consagrando assim a poesia e a profecia, a que ele tanto
se dedicou também), mas sim «o laço entre o Mundo e Deus».
Quanto à questão da Divindade, sempre essencial na Gnose, sabemos
quão crítico foi Fernando Pessoa
do Jeová bíblico, ou seja da concepção de Deus judaico-cristã, estando em linhas
próximas do Gnosticismo, nomeadamente de Marcion, e mesmo no fim da vida, ao
contrário da sua relação com Jesus e Maria, em que se dera uma aproximação grande ao
aceitá-los como grandes seres intermediários (algo que ainda não foi compreendido pela generalidade dos pessoanos), Fernando Pessoa continuará a desvalorizar o Demiurgo
ou criador deste mundo, provavelmente apontando para uma visão ou um
entendimento emanacionista cíclico e não criacionista: «E isto tudo durará o
tempo que tiver que durar, porque nada há perene ou eterno, e o mesmo Deus que
criou este mundo não é porventura mais que um de muitos «deuses», criador de um
de muitos «universos», misteriosamente coexistentes, todos eles porventura
descritíveis como infinitos e eternos. O mistério – di-lo o mais alto ocultismo
– é maior não só que o Universo, mas que o mesmo Deus».
De realçar aqui as expressões “alto ocultismo”, referida em
parte às Ordens Secretas e seus ensinamentos a que teve acesso (nomeadamente a
Golden Dawn e a Astra Astrarium), e o “mistério”, que na Gnose mais tradicional
é designado pelo Um, o Espírito perene e absoluto, o Princípio de Tudo, o
Absoluto, donde emanam ciclicamente as manifestações cósmicas, onde se
erguerãos os deuses e as individualidade…
Fernando Pessoa
contudo talvez se tenha autolimitado nesta captação do Absoluto, o que está
também patente na sua tragédia subjectiva Fausto (mito arquétipo até
com raízes na vida do gnóstico Simão, o Mago), pois vê ou vizualiza acima
de Deus, o Destino, a Inteligência: «acima da ânsia de fusão com os produtos de
Deus, está, com efeito, a ânsia mística de fusão com Deus, que é a base do
ocultismo (quase) todo. Mas acima desta mesma ânsia está a ânsia de fugir a
Deus e ao mundo – a ânsia de fusão com o Destino. (...) A Inteligência não é
deste mundo, é estranha à substância do mundo: deriva do Destino, superior aos
Homens e a Deus», concepção esta que desenvolverá nos textos intitulados
Caminho da Serpente, nos quais
diminuía a sua relação viva com a Divindade, ou com o seu Logos salvador, mas
que acaba por repudiar, tal como abdicadas
foram a via da magia e da alquimia, conforme ele próprio confessa no fim da sua
vida: «pensar o que fazer do caminho da serpente agora repudiado», fragmento
este que não tem sido tomado em conta pelos poucos que se debruçaram, e em
geral insuficientemente, sobre este caminho da Serpente, ascensional mas que se pode tornar
demasiado luciferino, isto é, intelectual e sem a devoção e amor às
manifestações libertadora possíveis da Divindade…
Certamente que os Gnósticos,
também conhecidos, na divisão valentiniana (do gnóstico Valentino), por
pneumáticos (de pneuma, espírito e sopro, em grego, com o qual se
identificavam e a partir do qual se libertavam das prisões terrenas) serão uns
poucos e isolados, em comparação com os hílicos, ou terrenos, e os psíquicos
ou mentais (os envoltos na dualidade, no ego, no pensamento discursivo ou na
vaidade do ensinar), isolamento este que estava bem para a aristocracia de espírito
ainda que vagabunda, pobre e desassossegada do individualista e modernista Fernando
Pessoa, que lembrará, porém, que a Gnose, a Iniciação,
não é meramente uma torre de marfim intelectual mas um estado intensificado de
vida e de intuição, em que «os graus de iniciação representam estados de
conhecimento que são simultaneamente estados de vida», afirmação esta
numa analogia de grau superior ou complementar à frase “o que em mim está
pensando está sentindo”.
A vertente ou eixo mais directo
ou essencial da desvendação e autoconhecimento salvífico ou libertador,
característico da Gnose universal, será também transmitido por Fernando Pessoa
quer em poemas, como os do ciclo de Isaac Luria e de Jesus, quer em fragmentos, nomeadamente o importantíssimo dos últimos
meses da sua caminhada na Terra: «o conhecimento de Deus não depende do hebreu,
nem de anagramas, nem de símbolos. Nem de língua alguma, falada ou pensada
(variante: figurada); faz-se pela ascensão univocal da alma, pelo encontro
final da alma consigo mesmo, do Deus em nós consigo mesmo».
Certamente que estas
palavras finais apelam a uma Gnose exigente nossa, iniciática, auto-consciente
e profunda e perseverante para alcançar a dimensão divina e unitiva e para lembrar e estimular a
isso serve a tradição Gnóstica, na qual Fernando Pessoa se inseriu e nós também...
Vale!
Alguma bibliografia sobre a
Gnose:
Gasparo, Giulia Sfameni. Gnostica
et hermetica. Saggi sullo Gnosticismo e sull’ Ermetismo. Roma, ed.
dell’Ateneo, 1982. Puech, Henri-Charles.
En quête de la
Gnose. I , II. Paris, Gallimard, 1978. Grant, Robert M. La Gnose et les origines chrétiennes. Trad.
Paris, Seuil, 1964. E os textos que editei em Fernando Pessoa, Rosea Cruz. Lisboa, 1989. E a Poesia Profética, Mágica e espiritual. 1989.
Bibliografia apenas
com os nomes de autores:
Obras
de Louis Ménard, G. R. S. Mead, Hans Leisegang, A. Siouville, Bô Yin Râ, A. J.
Festugière, E. Bonaiuti, Hans Jonas, Mircea Eliade, I. Couliano, Valentin
Tomberg, Duncan Greenlees, A.-J. Festugière, Simone Pétrement, Henri-Charles
Puech, Jean Doresse, Yuri Stoyanov, Bedde Griffiths, Karlfried Graf Dürckeim,
Henry Corbin, Giulia Sfameni Gasparo, Serge Hutin, Robert Ambelain, Émile Gillabert, Jacques
Ménard, Robert M. Grant, Raimon Panikkar, André Wautier, Elaine Pagels,
Benjamin Walker, Antonio Piñero, Pedro Teixeira da Mota..., etc.
2 comentários:
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Sepideh
Hi dear Sepideh
I have given already answer to you by mail. But I will try to translate the parts that interest you more, as we know how weak are so many automatic translations automatic, as Bing...
We will keep in contact in the Irfan or Gnosis of the human being, of Persia, of Fernando Pessoa...
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